Como impedir que o capitalismo, que já nos roubou o presente, nos roube também o amanhã?
Fontes: Racismo Ambiental e El País Brasil
Nós, os que hoje estamos vivos, nunca enfrentamos uma ameaça como o novo coronavírus. Se tantos repetem que o mundo nunca mais será o mesmo, qual é então o mundo que queremos?
Ninguém se iluda. Enquanto a pandemia é enfrentada, essa resposta já está sendo disputada. É ela que vai determinar o futuro próximo. Lutar pela vida ameaçada pelo vírus é o imperativo da emergência. É preciso, porém, fazer algo ainda mais difícil: lutar pelo futuro pós-vírus. Se não o fizermos, a retomada da “normalidade” será a volta da brutalidade cotidiana que só é “normal” para poucos, uma normalidade arrancada da vida dos muitos que diariamente têm seus corpos esgotados. O rompimento do “normal”, provocado pelo vírus, pode ser a oportunidade para desenhar uma sociedade baseada em outros princípios, capaz de barrar a catástrofe climática e promover justiça social. O pior que pode nos acontecer depois da pandemia será justamente voltar à “normalidade”.
As grandes corporações já começam a se mover para garantir o controle do que virá. Na semana passada, as companhias de petróleo foram recebidas por Donald Trump na Casa Branca. Não foram discutir como salvar os mais pobres dos efeitos da pandemia. No Reino Unido, as companhias de aviação fazem lobby por subsídio governamental e, claro, desregulamentação. Tampouco elas foram se reunir para tomar chá e discutir investimentos na área social.
Diante do novo coronavírus, até baluartes da imprensa liberal, como The Economist e Financial Times, ambos nascidos no berço do capitalismo, têm anunciado que é preciso dar um passo atrás. Maior intervenção do Estado e políticas como renda mínima e taxação de fortunas, antes consideradas “exóticas” por esses segmentos, têm sido elencadas na abordagem do novo contrato social no mundo pós-pandemia. Conceder um pouco para garantir que nada mude no essencial é um truque antigo.
Com o vírus, descobrimos que aqueles que afirmavam ser impossível parar de produzir, reduzir o número de voos, aumentar os investimentos dos governos e mudar radicalmente os hábitos apenas mentiam. O mundo mudou em menos de três meses em nome da vida. É também em nome da vida que precisamos manter as boas práticas que surgiram deste período e pressionar como nunca antes por outro tipo de sociedade, tecida com outros fios.
A tarefa é inadiável. Se não fizermos isso, o mundo pós-coronavírus será ainda mais brutal e o colapso climático se aprofundará. Para o extermínio da natureza não há nem jamais haverá vacina. Nosso futuro depende de enterrar o sistema capitalista que exauriu o planeta e nos trouxe até o tempo das pandemias. E para isso também não serve o comunismo que explorou, destruiu vidas, corroeu a natureza e oprimiu os corpos. Precisamos encontrar outros caminhos. E rápido. Muitos dizem que é ingênuo. Outros dizem que é impossível. O que é ingênuo é sentar na cadeira de pregos que se tornou o presente e esperar os efeitos da brutal superexploração da natureza (terminar de) deformar a face do planeta. Impossível é seguirmos vivendo como temos vivido.
O isolamento físico tem que ser usado para produzir pensamento social e para atuar coletivamente, em rede. Este artigo, dividido em duas partes, é uma colaboração para o debate do futuro que precisa ser travado no presente. Agora.
1) No Brasil, todos os caminhos levam ao neoliberalismo
O presente, no Brasil, é uma armadilha. Temos um antipresidente – e a antipresidência é um conceito criado pelo bolsonarismo – que faz oposição ao seu próprio governo. A técnica ficou clara desde o início do mandato, mas ganhou contornos dramáticos na pandemia, quando Jair Bolsonaro abriu guerra contra seu próprio ministro da Saúde. A negação da realidade, como método de manutenção do poder, tem vários efeitos sobre a população. Um deles é ocupar o noticiário e sequestrar o debate.
Em vez de debater a ameaça mais urgente, estamos travando o falso debate lançado contra os brasileiros por Bolsonaro: isolamento ou não isolamento, ou saúde versus economia. É o que acontece quando se elege um homem que, no passado, planejou explodir bombas nos quartéis para pressionar por aumento salarial. As bombas de Bolsonaro hoje são de desinformação, visam ao caos e também podem matar.
O problema é ainda maior porque a negação da realidade também produz realidade. Neste caso, não só a de colocar a população em risco, mas também a de fazer acreditar que há oposição real. Essa ilusão que cresce no Brasil, até por desespero, pode comprometer o futuro de forma irreversível.
Se Jair Bolsonaro (sem partido) renunciar, o que parece bastante improvável no momento, ou se for impedido, o que também ainda parece distante, quem assume é o vice. Hamilton Mourão é um general quatro estrelas da reserva que até a eleição era considerado golpista, devido a várias declarações públicas. Ainda na campanha, chegou a dizer, em entrevista à GloboNews, que em “caso de anarquia” um presidente pode dar um “autogolpe” com “o emprego das forças armadas”. Comparado a Bolsonaro, até um pitbull torna-se “moderado”. É o que vem acontecendo com Mourão, como escrevi mais de um ano atrás.
O terceiro na hierarquia é Rodrigo Maia (DEM). Além de indiciado pela Polícia Federal por corrupção, o presidente da Câmara dos Deputados é totalmente identificado com o neoliberalismo que nos trouxe até a situação atual e com as forças mais conservadoras do país, com exceção (por enquanto) dos evangélicos de resultados. O que tornou Maia um exemplo de moderação e competência para o que chamam de “mercado” foi realizar a reforma previdenciária que, se era necessária, claramente o modelo aprovado não foi nem o melhor nem o mais justo para os trabalhadores, que tiveram suas vidas ainda mais precarizadas. Maia, a quem até o advento do bolsonanorismo parte dos brasileiros preferia ver pelas costas (ou na cadeia), tornou-se uma espécie de oráculo do bom senso, o que mostra o nível do abismo em se encontra o Brasil.
E então temos os novos candidatos a estadistas, na figura dos governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro. João Doria (PSDB) e Wilson Witzel (PSC). Doria, o gerente privatizador, e Witzel, defensor da violência policial nas favelas. Até ontem, ambos eram unha e carne com Bolsonaro. Ou vogal e consoante, no caso de Doria, que se elegeu como “Bolsodoria”. Para conter a pandemia, eles apenas seguem em seus estados as orientações sanitárias internacionais, mas, como fazer o óbvio é fazer o oposto do que Bolsonaro prega, despontam como defensores do povo contra o bolsovírus. Têm os olhos grudados na eleição presidencial de 2022.
Bolsonaro presta um grande serviço aos ex-melhores amigos. Em São Paulo, especialmente, ele livra Doria de explicar o pouco investimento na rede de saúde pública pelo seu partido, que comanda o Estado há mais de 25 anos. Na ponta, é essa falta de investimento no Sistema Único de Saúde (SUS) que vai resultar em mortes por coronavírus.
Em todo o país, o falso debate eclipsa o verdadeiro debate. A pandemia tornou explícita a importância do estatuto público da saúde. E revelou toda a monstruosidade da PEC-95, a do teto dos gastos públicos do governo de Michel Temer (MDB), típica política neoliberal de Estado mínimo, que tirou bilhões da saúde. Grande parte desta conta está sendo paga agora. Com vidas.
No atestado de óbito, as vítimas terão “morte por coronavírus”. Mas, em parte dos casos, o que as terá matado é a precarização da saúde pública, o aumento da desigualdade e da miséria nos últimos anos, a falta de investimento em saneamento e moradia digna. E, finalmente, o fato de que há uma parte da população que segue exposta ao vírus porque não lhes é permitido parar de trabalhar.
A imagem da armadilha em que o Brasil está enfiado é a do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Ao afrontar o chefe e tomar medidas óbvias na pandemia, Mandetta se tornou o novo herói nacional. Todos os erros, como demorar a providenciar testes, máscaras e outros equipamentos de proteção, são perdoados. Principal opositor de seu ministro, Bolsonaro também presta um grande serviço a ele. E a seu próprio governo, já que, qualquer que seja o resultado, pode ser atribuído ou distanciado do governo. Essa é a esperteza de abarcar a situação e a oposição.
Vejamos quem é o novo herói nacional, hoje adulado e apoiado por todos os campos ideológicos. Mandetta, conhecido defensor dos ruralistas, na saúde se manifestou frontalmente contra o programa Mais Médicos e militou contra o aborto. Também já lamentou a fragmentação das famílias causadas pela Lei do Divórcio. Dilma Rousseff demarcou muito menos terras indígenas que seus antecessores, uma das razões porque recebe severas críticas de indígenas e ativistas do meio ambiente. Ainda assim, Mandetta achou que a presidenta exagerava. “A presidente está dirigindo a sua raiva contra os produtores rurais, colocando todo o seu querer mal ao Brasil no agronegócio”, discursou no plenário, em 2016. No ano seguinte, foi um crítico feroz da Carne Fraca, operação da Polícia Federal que investigou as irregularidades nos frigoríficos.
O novo herói brasileiro aponta onde está o Brasil. Cada um conclua. A oposição real, como já se tornou explícito, é fraca. E não consegue mostrar qual é a sua grande diferença, muito menos convencer a população de que é diferente. Enroscada com Lula e com o PT, ou brigando com Lula e com o PT, a esquerda deixou de disputar o país. Acha que disputa, é claro, mas ninguém liga. O desempenho mais sólido é o do Psol, mas o partido ecoa apenas num número pequeno de brasileiros.
Isso não significa dizer que a esquerda seria uma solução, na medida em que parte significativa da esquerda brasileira segue cimentada no século 20, totalmente alienada das grandes questões atuais, como a crise climática e a destruição da vida natural no planeta. Quem fez oposição de fato, no Brasil pré-pandemia dos últimos anos, foram grupos identitários: mulheres, jovens, negros e indígenas. A oposição é política, mas não tem partidos políticos como protagonistas. E ainda é preciso ter partidos políticos para fazer a disputa do futuro.
Assim, no período pós-pandemia, ou mesmo durante a pandemia, já que não se sabe se ela acaba, todos os caminhos levam à direita neoliberal. Este é o buraco diante do Brasil. É também o buraco em muitos países – grande parte deles atolados na crise das democracias ocidentais, alguns às voltas com os déspotas eleitos.
O Brasil tem, portanto, dois gigantescos desafios. O primeiro é impedir que o vírus mate milhares de brasileiros. Não há dúvida de que serão os mais pobres que morrerão mais. Os que não têm casas compatíveis com o isolamento; os que têm sido obrigados pelos patrões a trabalhar; os que foram demitidos; os que vivem de bicos, na informalidade, e já não conseguem trabalhar. Os que não vão conseguir se alimentar com os 600 reais que o governo está oferecendo. Os que não têm esgoto, não têm água e logo não terão também comida. Os que ficarem doentes e não encontrarem vagas na rede pública de saúde, sabotada nos últimos anos em nome da privatização e do lobby dos planos privados de saúde.
O auxílio emergencial de 600 reais para os informais é mais uma prova do buraco paradoxalmente grande – e ao mesmo tempo claustrofóbico – em que o país está enfiado. Diante dos 200 reais inicialmente propostos pelo ministro da Economia Paulo Guedes, de repente 600 reais passaram a soar com notas de decência. O valor, porém, é totalmente indecente. Ninguém vive no Brasil com dignidade mínima com 600 reais. Para a outra metade dos trabalhadores, a que têm carteira assinada, o governo permitiu cortes de jornada e de salários.
Para quem se enrosca com o significado de neoliberal, é isso. Vale a pena pesquisar para encontrar definições mais sofisticadas e completas. Em um parágrafo, o que pode ser dito é que os neoliberais acreditam que o Estado deve interferir o mínimo possível e que o Mercado se autorregula. Para isso, é fundamental enfraquecer as representações de trabalhadores e a palavra para tudo é “flexibilização”. Privatizar, desregulamentar, flexibilizar – estes são os verbos favoritos do neoliberalismo. Perceba então que toda vez que “flexibilizaram” algo no Brasil, foram os trabalhadores urbanos e rurais, os indígenas, a natureza e outras espécies que se ferraram. Ao trabalhador precarizado e com cada vez menos direitos deram o nome bonito e moderno de “empreendedor”. Livre e autônomo para morrer trabalhando. E, se não conseguiu “empreender”, as razões para o fracasso também lhe pertencem. Veja agora você, que é “empreendedor”, em que situação está. E veja se é isso que você quer continuar a ser.
No estágio neoliberal do capitalismo todas as relações são, ao mesmo tempo, reduzidas ao consumo – e submetidas ao consumo. O que define cada “indivíduo” é sua capacidade de consumir. Suas escolhas se reduzem a escolher entre produtos, marcas, preços, cores, formatos; sua liberdade é a de consumir o que sua renda permitir e a de desejar se exaurir mais para ter mais dinheiro para consumir. Toda a vida é mediada por mercadorias e, acima de qualquer outra identidade, você é consumidor.
É neste sistema que o planeta, supostamente à disposição dos consumidores, foi consumido; que espécies inteiras foram destruídas e outras subjugadas para terem seus corpos consumidos em produção industrial. É assim que você nasce para, consumindo seu corpo e seu tempo, se consumir. E é assim que os humanos se tornaram, a partir da revolução industrial, que iniciou um processo cada vez mais veloz de emissão de CO2 pela queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo etc), uma força de destruição do planeta.
Pressionadas pelo colapso da natureza que provocaram e pela evidência de que haverá mais pandemias, as grandes corporações que controlam o mundo e aqueles que se beneficiam delas tentam agora reinventar o sistema de destruição, como já fizeram no passado, para continuar no controle. Têm muita chance de conseguir.
No Brasil, Bolsonaro fez o serviço de esticar tanto os limites, que tornou todas as forças conservadoras ao seu redor aceitáveis. Não sei o quanto ele percebe que este é o seu principal papel. O fato é que o executa brilhantemente. Cada vez que se comporta como um maníaco, faz figuras que até ontem causariam arrepios despontarem como estadistas. Antes dele, um Mourão na presidência era inimaginável depois de mais de 20 anos de ditadura militar. Antes dele, Rodrigo Maia era só mais um representante tradicionalíssimo de um Congresso marcado por corrupção e fisiologia. Antes dele, Doria e Witzel, cada um no seu estilo, jamais receberiam aplausos de parte da esquerda ou afagos de Lula. Antes dele, Mandetta era um político preocupado em apoiar projetos corporativos de setores da saúde e fazer lobby para ruralistas. Graças a Bolsonaro e à incompetência da oposição real, todos eles nos lideram.
É assim que vai ser, então?
O Brasil tem dois enfrentamentos urgentes para fazer: a disputa do presente, que é o novo coronavírus, e a disputa do futuro, que se dá também agora, no presente.
Enfrentar uma pandemia num país em que desigualdade e pobreza extrema aumentaram nos últimos anos pelas políticas neoliberais é um imenso desafio. Mas talvez seja ainda maior o desafio de imaginar um futuro que não seja a volta de uma normalidade que só era normal para os privilegiados de sempre. Na armadilha que se tornou o país, todos os caminhos levam ao mesmo lugar. Os personagens que disputam o presente e o futuro dentro da estrutura do Estado são no fundo todos iguais – ou pelo menos muito parecidos.
Como aprender com o coronavírus a criar um futuro que não seja mais aniquilação?
Parece quase impossível quando todas as saídas estão barradas pelas tropas neoliberais. Elas já se organizam para chicotear a população após a pandemia, com o imperativo de produzir para poder superar a recessão e retomar o dogma do crescimento. Já tivemos indícios de que o coronavírus será usado para impor perdas de direitos e de liberdades. A China, com seu comunismo capitalista (sim, isso é possível), ampliou ainda mais sua vigilância despótica sobre a população. É apenas um sinal do que está por vir.
Em breve, pode apostar, os governos vão pedir o sacrifício de todos, que nunca é o de todos, mas o dos de sempre. Prestem atenção ao significado que será dado à palavra “retomada” – e pensem no que será retomado. A pandemia é nova. Os métodos dos que trouxeram o planeta até este estado de coisas, não.
Parece impossível disputar o futuro nessas condições. Mas tudo o que temos é encontrar um caminho para minar a criatura chamada capitalismo, que no nosso tempo se expressa pelo neoliberalismo, e impedir que se regenere. Mais do que nunca, hoje lutamos pela vida.
2) Temos que barrar os senhores do mundo antes de eles conseguirem dar o golpe (mais uma vez)
Há tempos os pensadores ocidentais não se empenhavam tanto em interpretar um momento. Faz todo o sentido. Nada é – ou foi – maior do que essa pandemia como ameaça global capaz de mudar tudo em um segundo. Inclusive o olhar dos humanos sobre si mesmos, ao descobrir a espécie, esta que sempre se considerou dona do planeta, ameaçada por um ser microscópico. Já existe pelo menos um livro com coletânea de artigos de filósofos sobre o coronavírus e seus efeitos. Há uma diferença, porém. Há os pensadores que compreenderam a crise climática e há os que seguem às voltas com dilemas do século 20, como grande parte da esquerda mundial, e que não foram afetados pelas angústias da época atual.
Entre os pensadores conectados com a emergência do clima, o francês Bruno Latour é o autor de uma das melhores contribuições para pensar o momento já como ação. O texto foi traduzido pela filósofa brasileira Déborah Danowski, outra pensadora relevante sobre o contexto atual. Em sua análise, Latour assim define a lição posta pelo novo coronavírus: “A primeira lição do coronavírus é também a mais espantosa. De fato, ficou provado que é possível, em questão de semanas, suspender, em todo o mundo e ao mesmo tempo, um sistema econômico que até agora nos diziam ser impossível desacelerar ou redirecionar. A todos os argumentos apresentados pelos ecologistas sobre a necessidade de alterarmos nosso modo de vida, sempre se opunha o argumento da força irreversível do ‘trem do progresso’, que nada era capaz de tirar dos trilhos, ‘em virtude’, dizia-se, da ‘globalização’”.
E aponta o risco: “Qualquer motorista sabe que, para ter alguma chance de se salvar fazendo uma rápida manobra no volante, sem sair da estrada, é melhor primeiro desacelerar… Infelizmente, não são só os ecologistas que veem nessa pausa súbita no sistema de produção globalizado uma grande oportunidade de fazer avançar seu programa de aterrissagem. Os adeptos da globalização, aqueles que, em meados do século 20, inventaram a ideia de escapar das restrições planetárias, também veem nela uma excelente oportunidade de se desvencilhar ainda mais radicalmente do que resta de obstáculos à sua fuga para fora do mundo. Para eles, essa é uma oportunidade boa demais de se livrar do resto do Estado social, da rede de segurança dos mais pobres, do que ainda resta de regulamentação contra a poluição e, mais cinicamente ainda, de se livrar de toda essa gente em excesso que atulha o planeta. (…) Os adeptos da globalização são perigosos porque eles sabem que perderam, sabem que a negação das mudanças climáticas não poderá continuar indefinidamente, que não há mais nenhuma chance de conciliar seu ‘desenvolvimento’ com os vários ‘envelopes’ do planeta com os quais a economia terá que se haver mais cedo ou mais tarde. Isto é o que os torna dispostos a tentar de tudo para se aproveitar mais uma (última?) vez das condições excepcionais, para poder durar um pouco mais e proteger a si próprios e aos seus filhos”.
Antes que alguém levante a balela do desenvolvimento “sustentável” como a panaceia capaz de colocar o capitalismo de novo nos trilhos, vale escutar outro pensador, este indígena. Autor de Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras), Ailton Krenak provocou ódio e ranger de dentes tempos atrás, ao afirmar que “sustentabilidade era vaidade pessoal”. Toda corporação, incluindo as mais destrutivas, tem hoje um gerente de sustentabilidade. Faz parte da capacidade de cooptação e adaptação do capitalismo. Sempre uma cretinice a mais.
Em março, já com a pandemia atravessando o globo, Krenak assim explicou na abertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, ao falar sobre perspectivas anticoloniais: “Nós vivemos precariamente uma relação de consumir o que a mãe natureza nos proporciona. E nós sempre fizemos um uso do que a nossa mãe nos proporciona da maneira mais folgada possível. Até que um dia nós nos constituímos numa constelação tão imensa de gente que consome tudo, que a nossa mãe natureza falou: peraí, vocês estão a fim de acabar geral com tudo que pode existir, aqui, como equilíbrio e como possibilidade daquilo que é fluxo da vida? Vocês vão esquadrinhar a produção da vida e decidir quantos pedaços de vida cada um pode obter? E, nessa desigualdade escandalosa, vocês vão sair por aí administrando a água, o oxigênio, a comida, o solo? E então [a natureza] começou a botar limites à nossa ambição.
Uma maneira que os humanos fizeram para administrar isso foi criando a ideia, por exemplo, de que existe um meio ambiente e que esse universo é uma coisa que você pode gerenciar. E dentro desse meio ambiente alguns fluxos vitais podem ser medidos, avaliados e habilitados, alguns deles inclusive com selos de sustentabilidade.
Se você tirar água do aquífero Guarani, por exemplo, uma água de muito boa qualidade, e se você engarrafar direitinho, você é uma empresa sustentável. Mas quem disse que tirar água do aquífero Guarani é sustentável? Você pratica uma violência na origem e recebe um selo sustentável no caminho. E assim com a madeira. Isso é uma sacanagem, não tem esse papo de água sustentável e não tem esse papo de madeira sustentável”.
Diz então a verdade terrível, que é também o ponto de partida de qualquer proposta para o futuro que formos capazes de esboçar: “Nós somos uma civilização insustentável, nós somos insustentáveis. Como é que então vamos produzir alguma coisa em equilíbrio?”.
Este é o desafio.
Assim que novo coronavírus der uma brecha, os profetas do neoliberalismo começarão a sua pregação: “É preciso produzir e crescer!”. Não há dogma maior na economia do que o do crescimento. Milhares de economistas perderão seu emprego no ramo da astrologia econômica caso o dogma do crescimento seja desmascarado. Crescer é o imperativo de todo país. Quem não lembra do “fazer o bolo da economia crescer para então repartir o bolo” que o ministro da ditadura e astrólogo econômico maior do Brasil, Delfim Netto, repetia no regime de exceção? Mais tarde, com a expansão do neoliberalismo, nem isso. Bastava que os mais pobres soubessem que, se o país crescesse, alguma coisinha poderia eventualmente sobrar pra eles.
O dogma do crescimento é construído sobre uma mentira: a possibilidade de explorar infinitamente os recursos de um planeta com recursos finitos. Bastam dois neurônios para entender que não é possível. E aí vem o outro dogma, o da sustentabilidade, como se fosse possível tornar sustentável o que, em sua estrutura, é insustentável.
O que o dogma do crescimento faz é proteger os privilégios dos muito ricos: o problema deixa de ser a distribuição igualitária das riquezas existentes e passa a ser o crescimento insuficiente, que não permite garantir o suficiente para todos. O imperativo de crescer é repetido à exaustão para encobrir a injustiça estrutural: a desigualdade na distribuição de riquezas. Carregando seu corpo exaurido, mesmo o pobre passa a acreditar que sua miséria é provocada por falta de crescimento. Sem reparar que nos momentos em que o tal bolo cresceu, as fatias se tornaram maiores para os que já eram donos do bolo e sobrou para ele, quando muito, a farofa da cobertura.
No Brasil, o 1% mais rico concentra quase um terço da renda (28,3%), o que dá ao país o título de vice-campeão mundial em desigualdade, segundo o último Relatório de Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas (ONU). O Brasil só perde para o Catar – e apenas por 0,7%. Cinco bilionários brasileiros concentram a mesma riqueza que a metade mais pobre do país, segundo estudo da organização não-governamental britânica Oxfam, publicado em 2018. Cinco pessoas concentram a mesma renda que 100 milhões de brasileiros. Este é o problema. Não é por falta de exploração da natureza que o país é tremendamente desigual. Ao contrário. O esgotamento dos suportes de vida do planeta é um dos principais geradores de pobreza e de desigualdade.
O dogma do crescimento, que faz as engrenagens do capitalismo girar, foi determinante para produzir a emergência climática. O que a emergência climática torna explícito é que já não será possível “crescer”. É necessário mudar radicalmente o modo de vida porque, como diz a jovem Greta Thunberg, “nossa casa está em chamas”. Diante do superaquecimento global e da perda de ecossistemas vitais, realmente imperativo é distribuir as riquezas existentes.
É esse conteúdo explosivo que faz com que as grandes corporações que dominam o planeta apoiem negacionistas do clima como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Com esses déspotas eleitos disseminando mentiras e distraindo o mundo com falsos problemas, elas ganham tempo. Já sabem que não dá mais para seguir, mas farão o impossível para ganhar o máximo enquanto for possível. Guardadas as proporções, é como a indústria do cigarro: negou os malefícios por décadas, contra todas as pesquisas científicas, e ganhou dinheiro produzindo câncer enquanto deu. Ainda hoje, contabiliza cifras bilionárias.
O desafio que nossa geração tem pela frente é imenso. E será duro. Muito duro. Como a crise climática se desenrola num outro tempo, o encontro com a realidade era sempre adiado pela maioria, apesar dos gritos dos cientistas e dos jovens. Os negacionistas foram eleitos porque grande parte da população mundial quer continuar negando o inegável junto com eles. Então o vírus escancara a realidade. Dele não dá para fugir, já que fugir é morrer.
O que temos hoje é uma janela de realidade, o momento em que todos, absolutamente todos, são obrigados a se encontrar com a verdade. É por isso que Bolsonaro se tornou ainda mais pirotécnico. Para manter o poder ele precisa falsificar a realidade. Vinha conseguindo, e o vírus arrancou de uma vez essa possibilidade. Diz então que “o vírus não é tudo isso que dizem”. Porque, apavorado, sabe que o vírus é muito mais. Diante da verdade da morte, nenhuma mentira vinga.
Bruno Latour assim anuncia o impasse da janela aberta pelo coronavírus: “Se a oportunidade serve para eles, serve para nós também. Se tudo para, tudo pode ser recolocado em questão, infletido, selecionado, triado, interrompido de vez ou, pelo contrário, acelerado. Agora é que é a hora de fazer o balanço de fim de ano. À exigência do bom senso: ‘Retomemos a produção o mais rápido possível’, temos de responder com um grito: ‘De jeito nenhum!’. A última coisa a fazer seria voltar a fazer tudo o que fizemos antes”.
Para que possamos seguir esse debate, reproduzo aqui as perguntas que ele lança para cada um e para o coletivo:
“Aproveitemos a suspensão forçada da maior parte das atividades para fazer um inventário daquelas que gostaríamos que não fossem retomadas e daquelas que, pelo contrário, gostaríamos que fossem ampliadas. Responda às seguintes perguntas, primeiro individualmente e depois coletivamente:
1) Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que não fossem retomadas?
2) Descreva por que essa atividade lhe parece prejudicial / supérflua / perigosa / sem sentido e de que forma o seu desaparecimento / suspensão / substituição tornaria outras atividades que você prefere mais fáceis / pertinentes. (Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na pergunta 1).
3) Que medidas você sugere para facilitar a transição para outras atividades daqueles trabalhadores /empregados / agentes / empresários que não poderão mais continuar nas atividades que você está suprimindo?
4) Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que fossem ampliadas / retomadas ou mesmo criadas a partir do zero?
5) Descreva por que essa atividade lhe parece positiva e como ela torna outras atividades que você prefere mais fáceis / harmoniosas / pertinentes e ajuda a combater aquelas que você considera desfavoráveis. (Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na pergunta 4).
6) Que medidas você sugere para ajudar os trabalhadores / empregados /agentes / empresários a adquirir as capacidades / meios / receitas / instrumentos para retomar / desenvolver / criar esta atividade?
Acrescento à lista uma pergunta minha. Não há nada que as grandes corporações que controlam o planeta, assim como os políticos neoliberais que os representam nas várias instâncias do Estado, temam mais do que a desobediência civil. No Brasil, as esmolas que concedem para que os mais pobres sobrevivam à pandemia têm por objetivo estancar a possibilidade do “caos social” ou de uma “convulsão social”. Ou seja: o povo nas ruas e já sem nada a perder.
Desde o final de 2018, o movimento que mais balançou a “normalidade” que os senhores do mundo tanto prezam foi a desobediência civil dos adolescentes, que se recusaram a ir para a escola a cada sexta-feira. No ato da greve escolar, eles denunciavam que os adultos roubaram o seu futuro ao não fazer o necessário para conter o colapso climático. Sem futuro, para que estudar? Como são crianças e adolescentes, esta era a desobediência civil disponível. E como funcionou.
Assim, a minha pergunta é: qual poderia ser a melhor ação de desobediência civil neste momento?
No Brasil de Bolsonaro, sabemos que nossa principal desobediência civil é sobreviver. Mas, para além de nos mantermos vivos, como podemos desobedecer aos produtores de morte para criarmos um futuro onde possamos existir com todos os outros?
Encerro com Ailton Krenak, porque acho que as melhores ideias virão dos pensadores indígenas, daqueles que sabem como viver sem esgotar o planeta e sem produzir iniquidades. Ele diz: “O próprio enunciado de alguma coisa que virá depois anima nosso sentido de viver. É a ideia de adiar o fim do mundo. Nós adiamos o fim de cada mundo, a cada dia, exatamente criando um desejo de verdade de nos encontrarmos amanhã, no final do dia, no ano que vem. Esses mundos encapsulados uns nos outros que nos desafiam a pensar um possível encontro das nossas existências – é um desafio maravilhoso”.
Vamos?