A Câmara Municipal de São Paulo aprovou, em 25 de setembro, o substitutivo do Projeto de Lei (PL) 171/2019, a “Lei da Anistia”, pelo qual poderão ser regularizados na cidade de São Paulo cerca de 750 mil imóveis residenciais e comerciais. A medida ainda precisa ser sancionada pelo prefeito Bruno Covas (PSDB).
A medida prevê três possibilidades de anistia. A primeira, automática, deve abranger cerca de 600 mil imóveis que em 2014 eram isentos do pagamento Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), cujo valor venal atualizado seja de até R$ 160 mil.
Outros 150 mil imóveis também poderão ser regularizados. Para aqueles com até 1,5 mil metros quadrados, os proprietários precisarão apresentar uma declaração, acompanhada da assinatura de um engenheiro responsável. Já os imóveis com área superior a essa também poderão ser regularizados, após o processo comum de fiscalização, assinatura de documentos por profissionais habilitados e análise da Prefeitura. Estes últimos eventualmente pagarão uma outorga onerosa de R$ 10 a cada metro quadrado a ser regularizado.
Sobre este assunto, o jornalista Daniel Gomes, comunicador voluntário da rádio comunitária Cantareira FM, conversou com a Profa Dra. Raquel Rolnik, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, que já atuou, por dois mandatos, como relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito a Moradia Adequada.
Anistiar moradias irregular não passa uma mensagem que as pessoas podem construir que uma hora haverá uma anistia em relação ao que existe?
Raquel Rolnik – Há uma história sistemática de adoção desse mecanismo de anistia na cidade de São Paulo. Essa não foi a primeira anistia e todos sabemos que não será a última. Praticamente em cada gestão municipal temos uma anistia, ao menos desde os anos 1930, e com mais intensidade a partir dos anos 50. Essas anistias se transformaram em um dos grandes instrumentos de constituição de bases eleitorais na cidade. Na verdade, temos todo um modelo de desenvolvimento urbano completamente excludente, que não estabelece nenhuma relação com a produção da cidade das maiorias, tornando uma cidade com casas e bairros autoproduzidos pelas próprias pessoas sem qualquer assistência técnica ou recurso e sem que uma legislação, que jamais dialogou com isso, mas sempre dialogou apenas com o mercado, esse mercado imobiliário formal, que também nunca se ocupou dessa tema. O que nós temos é que, por conta da própria legislação, é a legislação que decreta que essa produção da cidade é irregular em relação à própria legislação, sobre o uso de ocupação do solo e os códigos de obra da cidade. Dai, essa cidade irregular, que fica bloqueada do acesso aos serviços, de ter uma espécie de inserção plena na cidade, isso acaba sendo negociado caso a caso, bairro a bairro, rua a rua, por meio do sistema de representação política na Câmara Municipal e na Prefeitura. Assim, a anistia é um dos elementos deste sistema de representação política, que supostamente representa estes locais e que vai conquistar para esses locais os serviços, os equipamentos com um intermediador político que conseguiu, apesar da irregularidade. Então, a anistia faz parte deste mesmo mecanismo. Assim, esse mecanismo contribui zero para o planejamento da cidade, e zero para uma organização adequada da cidade. E mais: é extremamente perverso por manter tanto o modelo urbanístico excludente quanto o modelo político que é supre discricionário e muito pouco baseado em direitos em pleno funcionamento na cidade.
Anistiar essa quantidade de imóveis proporcionará que lucro ao poder público?
Raquel Rolnik – Na verdade, ele já está lucrando eventualmente com o aumento do IPTU, na medida em que construções irregulares passam a pagar o IPTU, mas temos uma pegadinha no caso específico desta última anistia: ela basicamente é sistemática, ou seja, universal, para todos os imóveis que são isentos do IPTU. O IPTU na cidade de São Paulo isenta imóveis com valor venal de até R$ 160 mil, que é a maior parte dos imóveis. Veja, estamos falando não de uma excepcionalidade, mas da relação da política urbana com as maiorias. Os templos religiosos também serão completamente isentos, independentemente do tamanho dos imóveis.
Com essa medida, ao menos 600 mil imóveis vão ser regularizados automaticamente. Fazer essa regularização sem uma fiscalização dos imóveis não representa riscos para a cidade?
Raquel Rolnik – O risco já ocorreu, a falta da fiscalização já ocorreu, mas insisto: o problema não é a falta de fiscalização. O problema é uma total dissociação entre o modelo de regulação, de gestão e de fiscalização e o processo real da produção das cidades das maiorias. São dois processos que não se conversam. Todo o modelo está voltado para um pedaço muito pequeno da cidade. O sistema inteiro ignora a existência da maior parte da produção da cidade, que, portanto, se dá na irregularidade. Se há algum prejuízo ele já está dado. Não é a anistia que vai criar o prejuízo. A anistia está reconhecendo o que já temos. E a coisa hipócrita que acontece em todas as anistias tem um limite das datas dos imóveis construídos, a partir do qual pode ser anistiado e a data a partir do qual construções não podem mais ser anistiadas. Toda vez que se declara uma anistia, se define uma data. Essa última é pra construções é para que foram feitas até o Plano Diretor de 2014. Dai em diante não se anistia, quer dizer, do Plano Diretor de 2014 em diante nunca mais acontecerá nenhuma construção irregular, até que se defina uma nova anistia. Se estabelece uma data, e isso é extremamente hipócrita, pois virá uma outra anistia no futuro e regularizará tudo que foi feito.
Professora, haveria um outro caminho para essa regularização?
Raquel Rolnik – Com certeza existe um outro caminho. É o caminho de se voltar toda a legislação e a gestão da cidade não para ficarem concentradas em 20% da produção da cidade, que é o que é feita pelas grandes construtoras, incorporadoras etc. e sim para a produção da cidade das maiorias. Esse é o caminho. Não é o de tentar regularizar depois que já foi produzido, mas sim antes, pra fazer com que a produção dessa cidade das maiorias possa ter assistência técnica, recursos financeiros de apoio, infraestrutura totalmente implantada antes de ser construída. Isso é necessário para que a gente possa efetivamente fazer a cidade crescer de forma planejada.