Por Maria Teresa Ferreira:
“Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesma” Neuza Santos Souza
Passados as eleições e diante dos acontecimentos recentes da história como a vitória de Joe Biden e Kamala Harris nos EUA, a eleição no Brasil de um número expressivo de mulheres negras e mulheres trans as câmaras de vereadores, a invasão do Capitólio, os reiterados pedidos e impeachment lá e aqui, podemos refletir profundamente sobre o futuro desenhar resultados e consequências.
O que ficou expresso em votos e vitorias é a importância da organização popular, foi ela que derrotou Trump e no Brasil pela primeira vez levou ao legislativo corpos negros e femininos. Esses resultados significam um avanço civilizatório e a possibilidade de construir concretamente mudanças estruturais numa sociedade racista, machista e transfóbica.
A revolução será feminina, negra e LGBTQI+ porque essas minorias politicas ultrapassaram as barreiras impostas pela violência do estado e pelo silencio social que juntos e por séculos invisibilizaram suas existências.
Ao desconsiderar sua capacidade de intervenção, também deslegitimaram suas vozes e suas necessidades, sufocando o desejo legitimo de participação dessas pessoas, a sociedade aumentou o abismo social entre elas, ao mesmo tempo possibilitou que esses grupos pudessem se organizar, ampliar seus espaços de inserção e principalmente se colocarem nesses ambientes como agentes de transformação social.
A construção dessa vitória foi lenta e a base de muitas reivindicações e lutas. As campanhas eleitorais, tanto nos EUA como no Brasil foram o ápice de uma caminhada que começou no momento em que os povos de África pisaram nas Américas e se consolidou numa série de movimentos e revoluções que envolveram as experiências do povo negro.
Desde o século passado o povo negro se organiza em busca de liberdade, autonomia e protagonismo. A Revolta dos Búzios, a revolta dos Malês, A Revolta da Chibata, a Balaida e tantos outros são a base desse chão que hoje pisa as câmaras municipais de cidades como São Paulo, Rio de janeiro, Curitiba, Salvador e tantos outros.
Na América do Norte podemos a Conferência da Liberdade Cristã do Sul (SCLC – Southern Christian Leadership Conference), tendo como fundador o pastor protestante da Igreja Batista Martin Luther King Jr, Malcom-X, que defendia a criação de um Estado Negro separado dos Estados Unidos, o movimento Black Power e o Partido dos Panteras Negras, são alguns dos movimentos que construíram o caminho para Kamala Harris tomar posse hoje.
A medida que o povo negro se organizou suas pautas foram carecendo de visibilidade e a ocupação do espaço político se mostrou imprescindível para as corroborar com as lluta por participação do povo negro. As pressões feitas para que a sociedade os ouvisse como representantes legítimos de parcela substancial da população, são capitulo indispensável para entender os efeitos da organização para alcançar espaços de poder e decisão.
A importância, envolvimento e inserção das mulheres negras nesse processo de luta por respeito, participação e reconhecimento da população negra é inegável, diria que foi fundamental. Ângela Davis, Beatriz Nascimento, Patrícia Hill Colins, Lélia Gonzales são parte dessa luta por transformações com discussões estratégicas para formulação de políticas públicas sobre as questões de gênero e raça para a inclusão e bem viver da população negra.
A presença e o crescimento das mulheres negras na luta por cidadania se fizeram em meio as violências físicas e emocionais, como bem escreve bell hooks em “Vivendo de Amor”, além da invisibilidade, quando não do apagamento social sistemático de referências femininas negras na academia por exemplo.
Sobreviver ao pensamento escravocrata que permeia o inconsciente coletivo, exige da sociedade e sobretudo do povo negro organização, tenacidade, persistência e coragem. Porque o pensamento conservador e retrogrado, como o do ex-presidente dos EUA e do atual presidente do Brasil, usam da violência sistêmica do estado para se manter no poder e nos silenciar.
Ao longo desse doloroso processo do exercício da cidadania os insucessos caminham perpasso com as vitórias, importante mantermos o horizonte em mente, livre das tentativas que minam a potência e a capacidade de reinvenção, organização e intervenções de um pensamento libertário e progressista.
Martin Luther King Jr. disse “Eu tenho um sonho…” para milhares de pessoas que ocupavam a esplanada do Monumento a Washington. Marielle Franco falou que “nós somos semente”, tendo a crer que que o sonho de King brotou com as sementes de Marielle para podermos ver os corpos negros transformando as estruturas sociais, as mudanças estão em curso e nós somos os instrumentos dessa revolução.