O novo rodízio de carros entrou em vigor na última segunda-feira, 11 de maio. Como reflexo, houve um aumento no número de passageiros no transporte público da capital paulista. Segundo a SPTrans, os ônibus registraram 10% a mais de usuários já no primeiro dia da medida, número idêntico ao apresentado pelo metrô. Na CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), a marca foi de 12%.
Diante do baixo índice de isolamento social na capital paulista, que tem ficado aquém do esperado desde 17 de abril, a decisão da prefeitura restringe a circulação de 50% da frota. Na prática, placas que finalizam com número par circulam apenas em dias pares e o mesmo vale para placas ímpares.
Segundo a Associação Internacional de Transporte Público (UITP), é fundamental considerar o transporte coletivo um ambiente com alto risco de contaminação. Isso porque muita gente divide um espaço confinado com ventilação limitada, não há controle de acesso para identificar pessoas potencialmente doentes e superfícies comuns para tocar (máquinas de venda automática, corrimões, maçanetas das portas).
Com o objetivo de impor medidas mínimas de prevenção, no dia 4 de maio a prefeitura anunciou a obrigatoriedade para o uso de máscaras em ônibus, táxis e carros de aplicativos na cidade de São Paulo. A determinação inclui a equipe de trabalho e passageiros. Quem não aderir a regra corre o risco de ser advertência e impedimento de seguir viagem.
Na última terça-feira, 12 de maio, o Brasil bateu o recorde de 881 mortes notificadas em 24h. O estado de São Paulo ainda desponta como a região com o maior número de infectados (47.719) e de mortes (3.949) pela covide-19. O governo projeta que pelo menos 100 mil pessoas sejam contagiadas até o final deste mês.
Todas as ações e recomendações de segurança não evitam, no entanto, que milhares de pessoas continuem suas rotinas. Para entender melhor como tem sido o cotidiano de quem precisa estar nas ruas todos os dias, o Nós, mulheres da periferia ouviu mulheres que exercem atividades que não param.
Com uso contínuo dos ônibus e coletivos, as entrevistadas relatam medo por circular em ruas mais vazias, cansaço emocional, receio constante de contaminar a si e seus familiares, agressões, além de terem redobrado suas atividades domésticas.
Angústia e distância da filha
Se você você mora na Penha, pode ser que tenha feito compras no mercado em que Rosângela da Silva Campos, 38, trabalha. Ela é auxiliar de faturamento, a pessoa responsável por fazer o recebimento dos produtos antes de chegarem às prateleiras. Assim como tantas outras pessoas, fazer home office não é uma opção.
Para chegar na hora, seu trajeto começa às 5h20 da manhã. São 50 minutos da sua casa, no Conjunto Habitacional José Bonifácio, em Itaquera, até seu posto de trabalho. Ambos os bairros estão na zona leste da capital paulista. A volta é no final da tarde, por volta das 17h.
Adepta das máscaras de proteção antes mesmo da obrigatoriedade, Rosângela conta que depois da imposição vê mais gente usando, mas afirma que era diferente antes do risco da multa.
Rosângela trabalha diariamente em uma rede de supermercados.
Crédito: Arquivo pessoal
“Eu me sentia um peixe fora d’água de máscara. As pessoas evitavam sentar do meu lado. Não que eu achasse ruim”, brinca em alusão ao afastamento social, “mas me olhavam torto e não queriam sentar do meu lado achando que eu tinha alguma coisa”, conclui.
A palavra que Rosângela usa para definir sua rotina é: assustadora. Isso porque, além do cansaço que o trajeto diário causa, tem se sentido emocionalmente pressionada.
“Você levanta e sai com medo de ficar sozinha na rua, com medo do vírus. Tem medo da pessoa que senta do seu lado. Se alguém tosse ou espirra você fica com medo. Então tem sido bem pesado pra gente que tem que pegar ônibus”.
Antes da quarentena sua casa era dividida por ela, seu marido, que é segurança em supermercado, e a filha de oito anos. Ainda em fase escolar e para ter acompanhamento nas atividades online, Maria tem passado a semana na casa da sua mãe, aos cuidados da avó e da tia. Além disso, há o medo da contaminação.
As duas só se reencontram no sábado a noite, já que sua única folga é aos domingos. Todo sábado à noite, depois do trabalho, Rose, como é chamada pela família, limpa a casa inteira com cloro para recebê-la.
Sobre essa distância, diz: “Me sinto sozinha e sinto muita falta dela. No começo a Maria estava mais animada, achando graça. Mas agora vê o tempo passar e continuar na avó e tem sentido muita falta de casa”.
Esse conjunto de fatores tem feito Rosângela perder o sono, literalmente. Ela se considera uma pessoa naturalmente ansiosa, mas agora tem acordado no meio da noite pensando no risco de ser contaminada.
“Acaba uma semana e eu penso: ‘nossa, consegui me livrar, será que na outra eu consigo também?’. Fica uma angústia, sabe? No começo de tudo isso eu via muita notícia, mas agora eu só vejo o básico”.
Ruas esvaziadas e trabalho doméstico dobrado
Uma das profissões que continua normalmente é a de assistentes sociais. No Brasil, essa é uma atividade exercida majoritariamente por mulheres.
Com apoio da Federação Nacional dos Assistentes Sociais (FENAS), trabalhadoras e trabalhadores da área se uniram para lançar a campanha #AssistenteSocialEssencial. O objetivo é reafirmar a importância da função durante o combate ao Covide-19, assim como as necessidades do grupo.
Gabriela Carmo Silva, 31, é uma das profissionais da área e trabalha na Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente). No seu caso, a equipe adotou uma escala de revezamento. Por isso, uma semana ela faz home office e, na outra, atendimento presencial.
Gabriela é assistente social e trabalha na Fundação Casa, em São Paulo, em regime de revezamento.
Crédito: Crédito: Arquivo Pessoal
Moradora de Itaquera, na zona leste, seu trajeto leva 40 minutos. Assim como Rosângela, ela percebe que as pessoas têm aderido ao uso das máscaras depois da obrigatoriedade, mas já presenciou motoristas paralisando a viagem até que um ou outro passageiro respeitasse a regra.
Mãe do João, que tem apenas um ano e meio, ter que sair de casa com frequência tem deixado Gabriela muito mais cansada. “Na semana que trabalho tenho mais cuidados de limpeza em relação a minha higiene e a higiene da casa. Assim como desinfecção das máscaras, dos sapatos que utilizo, das roupas, quase que diariamente”, explica.
E quando é a vez do home office o desgaste também é grande. Nesse caso, ela precisa conciliar o trabalho e os cuidados com o bebê. “Mesmo dividindo com o meu companheiro, durante o dia ele não consegue me auxiliar com as tarefas, já que trabalha na área da saúde, sem escala de revezamento”, desabafa.
No trânsito pela cidade, na ida e na volta, ela tem sentido as ruas mais vazias, o que a faz redobrar a atenção. “Como resido neste local há algum tempo as pessoas já me conhecem e acredito que isso seja um facilitador no meu trajeto, mas a insegurança para nós, mulheres, está conosco o tempo todo, infelizmente”.
Thais Helena Pires dos Santos, 39, sente o mesmo. Também assistente social, ela atua na área de saúde mental. Diferente de Gabriela, ela sai para trabalhar três vezes por semana, já que teve a opção de fazer um horário especial durante a pandemia.
Moradora do bairro Parque Tietê, na Brasilândia, zona norte de São Paulo, nesses dias ela se desloca até a Lapa, na zona oeste. No retorno, que costuma ser no período da noite, a partir das 18h, ela tem percebido às ruas mais vazias e isso gera uma preocupação. “Eu tenho procurado os pontos mais iluminados para esperar o ônibus”.
Mãe solo, o mais difícil para Thais tem sido se manter longe da família, dos amigos e dar conta de todas as atividades domésticas sozinha. “As tarefas domésticas não param. Eu cozinho, lavo e limpo a casa com muito mais frequência. E por ser mãe solo isso faz com que tudo recaia sobre mim.
Medo da contaminação e agressões
“Sou dentista e por uma questão contratual todas as sextas-feiras eu trabalho de roupa branca. Um dia, ao retornar para casa após 10 horas de atendimento odontopediátrico, uma mulher no transporte público começou a falar que eu estava contaminando o ambiente”, esse foi o relato que o Nós, mulheres da periferia recebeu de Márcia Porto, 46 anos.
Isso aconteceu porque a outra passageira entendeu que, por conta de seu uniforme denunciar que Márcia é uma profissional de saúde, ela estaria colocando os passageiros em risco e disseminando o Covid-19. “Confesso que senti medo de agressão física, visto que a verbal já estava ocorrendo. Fiquei apreensiva e optei por descer no ponto seguinte”.
Depois do ocorrido, ela parou de usar roupas brancas, assim passa despercebida, como uma trabalhadora de qualquer outra área. Ela conta que, quando usa branco, as pessoas costumam abordá-la para perguntar se é cuidadora de idosos, babá ou auxiliar de enfermagem. “Nada contra as profissões, mas como é difícil olhar um negro e deduzir que ele pode ter outros funções”.
Moradora do bairro da Penha, ela continua com uma rotina cheia. Nas terças, quintas e sábado ela atende em Parada de Taipas, bairro da zona norte de São Paulo. Às sextas-feiras, em Guaianases, na zona leste.
“Uso máscara cirúrgica diariamente e a descarto automaticamente quando chego no trabalho”, conta. Pra ela, deixar de usar branco é uma forma de tornar a sua mobilidade pela cidade mais segura.
“A ignorância dos humanos coloca em risco a minha saúde mental. Já estamos enfrentando o Covid-19 e ainda ter que lidar com os olhares e comentários maldosos, não necessito disso”, desabafa.
Esse conteúdo faz parte da #SalveCriadores, uma iniciativa que a partir do apoio a coletivos e criadores de conteúdo das periferias de São Paulo vai trazer reflexões e dados sobre a crise da COVID-19 e seus reflexos nas populações negras e periféricas. O projeto, desenvolvido pela Purpose, busca reforçar o importante trabalho que vem sendo feito por criadores de conteúdo e trazer pontos de vista e perspectivas que ainda não foram levantados. Os coletivos que fazem parte dessa iniciativa são o Alma Preta, o Nós, Mulheres da Periferia, a Periferia em Movimento e a Rádio Cantareira. Os conteúdos serão publicados nos canais de cada coletivo e divulgados nas redes sociais do Cidade dos Sonhos
Fonte: Nós Mulheres da Periferia