Quais sentimentos e desafios permeiam o cotidiano das trabalhadoras da área da saúde que estão na linha de frente no combate ao Covid-19?
Quais sentimentos e desafios permeiam o cotidiano das trabalhadoras da área da saúde que estão na linha de frente no combate ao Covid-19? Como essas mulheres, sujeitas a exposição da doença, encaram a volta para suas casas, para os seus filhos e demais familiares depois de um dia de trabalho? Como avaliam a estrutura de saúde para o acolhimento de pessoas que estão com coronavírus ou com suspeitas de terem a doença?
Essas e outras perguntas foram feitas para profissionais, que todos os dias encaram seus medos para combater o Covid-19. Se para a maioria da população a orientação é de isolamento social, para quem está nos serviços essenciais, sobretudo, quem trabalha na área da saúde, o papel é o da prevenção, orientação e cuidado para que as pessoas não adoeçam ou que tenham acolhimento e tratamento efetivos. Cuidar, nestes casos, significa colocar não apenas a própria saúde em risco, mas também a de pessoas que estão próximas.
Realidade enfrentada pelas profissionais da área da saúde Paloma da Silva*, Priscila Saffiotti, Barbara de Paula Mijas Saffiotti e Renata Aparecida de Barros Gomes. Mulheres que estão próximas a mim, a minha mãe e a minha família. Trabalhadoras que compartilharam um pouco de sua vivência no cotidiano de enfrentamento ao vírus.
“Estar na linha de frente traz um misto de sentimentos. Ao mesmo tempo que sabemos que poderemos efetivamente atuar no combate, cuidar do próximo, orientar na prevenção, somar com os demais colegas, também estamos diariamente com um risco elevado de contaminação pelo Covid-19 e ainda com a possibilidade de levar o vírus para nossos familiares, que na minha opinião é o que mais nos aflige”, desabafa Paloma da Silva*, que tem 33 anos.
Paloma é casada, tem dois filhos, sendo um deles asmático, o que o categoriza como sendo do grupo de risco. Por isso, sua preocupação e cuidados são redobrados.
Se antes ela simplesmente chegava em casa para relaxar depois de um dia cansativo, hoje, para evitar a contaminação, segue um ritual rigoroso antes mesmo de chegar à porta. “Só entro em casa pelo quintal onde já fica um álcool em gel, lá mesmo deixo os sapatos que chego da rua e troco por um par de chinelos pelo lado de dentro de casa, já deixo a roupa de cima na lavanderia. Lavo as mãos e entro em casa pela lavanderia indo direto para o banho”, lista.
O trabalho na periferia: falta o básico
Paloma trabalha em um posto de saúde* em um bairro periférico da zona noroeste de São Paulo, também mora na região e encara todos os dias o combate à doença em meio a uma realidade em que o acesso às necessidades básicas ainda é escasso. “As casas são pequenas e moram muitas pessoas. Em alguns locais não há saneamento básico, não há água encanada, ou convivem com o corte no abastecimento em grandes períodos do dia”, explica.
O trabalho é intenso e passa também por hábitos já enraizados nos bairros. “Temos também no território muitos bares em que costuma formar aglomerações de pessoas, em que temos que incansavelmente realizar ações preventivas e de conscientização”, aponta.
As barreiras impostas pelo meio onde atua são semelhantes das enfrentadas por Barbara Mijas, enfermeira trabalhou na UBS (Unidade Básica de Saúde) com Estratégia saúde da Família na Vila Dionísia, e hoje é gerente de UBS no Parque Peruche, ambas localizadas na periferia zona norte.
“Muitas pessoas estão em dificuldade, pois parentes estão sem trabalhar e sem renda, como nos casos das diaristas, autônomos”, conta Barbara.
Bater na porta das pessoas e ter que lidar com famílias em condições de moradia precárias e que perpassam a pandemia é a realidade da agente de saúde Renata Aparecida de Barros Gomes, 40 anos, que atende na UBS Elísio Teixeira Leite, na Cohab de Taipas, há cinco anos.
A trabalhadora da saúde alerta que a orientação do “ficar em casa” não é para todos. “Eu tenho uma paciente que mora em um cômodo em que vivem nove pessoas, então, é mais fácil elas ficarem na pracinha que é em frente de um córrego do que ficar dentro de casa”, explica.
Com acesso limitado a EPIs, máscaras de pano compradas com dinheiro do bolso reforçam proteção
Contaminar a família é algo que assombra Renata. Se proteger como pode para não ficar doente é uma preocupação que bate de frente com a limitação de acesso aos Equipamentos de Proteção (EPI).
“Proteção é complicado, a gente até já aderiu àquelas máscaras de pano, porque a demanda não vem para todo mundo. Nós precisaríamos de quatro por dia, pelas horas trabalhadas, mas na região em que atuo são 42 agentes comunitárias, não teria quantidade suficiente para cada uma de nós, então a gente acaba comprando as nossas próprias máscaras e fazendo a nossa proteção”, aponta Renata como solução.
Muitas trabalhadoras estão fazendo como Renata, por isso, ações na justiça também estão ocorrendo para que profissionais, que estejam comprando material de proteção do próprio bolso, sejam ressarcidas.
O sindicato representativo desta categoria, o Sindicomunitário-SP, acionou a Secretaria Municipal de Saúde com a exigência para que EPIs sejam fornecidos para esses trabalhadores.
O estado de São Paulo possui por volta de 34 mil ACSs (Agentes Comunitários de Saúde), destas, 9 mil atuam na capital paulista, segundo o DataSUS, no último levantamento de fevereiro de 2020.
Baixas e afastamentos pela doença: quando quem cuida fica doente
A grande preocupação de Paloma, Barbara e Renata de contaminar a família ou contrair a doença se tornou realidade para a técnica em enfermagem Priscila Saffiotti, 35 anos, que trabalha na Maternidade Municipal de São Vicente, litoral Paulista (SP).
Priscila, assim como Barbara, faz parte da minha família. Mesmo como o isolamento social, saber do medo que ambas estão vivenciando nos aproximou.
Entrei em contato com as duas, pela vontade de contar a história de pessoas que estão à frente dessa luta diária contra o Covid-19.
Saber que Barbara passa pelo medo constante de contaminar a família me comoveu, assim como descobrir que a Priscila, minha prima, está com sintomas da Covid-19.
Priscila teve que se isolar do filho de seis anos e de sua mãe que, pela idade, está na faixa de risco. Ela ainda não sabe se está com a doença, porque não há testes para todo mundo.
Sem ter o diagnóstico preciso, segue isolada na parte de cima da casa, e sua mãe e filho ficam no piso inferior.
A técnica em enfermagem alerta para as subnotificações e para o fato de que boa parte de seus colegas de trabalhos estarem assintomáticos.
De acordo com levantamento feito pelo Cofen (Conselho Federal de Enfermagem), no país, quase 7 mil profissionais da saúde foram afastados do trabalho desde o começo da pandemia por apresentarem sintomas suspeitos. Destes, os que conseguiram o teste, pelo menos 1.400 estavam infectados, e 18 deles morreram de Covid-19.
O número de enfermeiros e técnicos possivelmente infectados teve um aumento 660% na última semana, e passou de 158 para 1.203 casos. Deste percentual, boa parte dos trabalhadores era da enfermagem, sendo 83% mulheres.
O desafio para a valorização do trabalho da saúde
De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), 80% do segmento de enfermagem é composto por mulheres.
No Brasil, esse percentual é de 85,5%, de acordo com a “Pesquisa Perfil da Enfermagem” do Cofen e da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
A OMS destacou que o país é o que menos dá estrutura de trabalho adequado para essas profissionais. Em uma escala de 1 a 6, o país recebeu nota 2 quando se trata de direitos trabalhistas e estruturais.
“Nós enfrentamos uma carga horária excessiva. Salário baixo, salubridade mínima. Estamos na luta das 30hs semanais, direito adquirido no estado e não em todos os municípios. Precisamos fazer horas extras, são horas exaustivas que derrubam nossa imunidade. A maioria dos profissionais fazem uso de ansiolíticos. É uma briga de anos. Agora com a pandemia potencializou. Estamos em um momento de crise na saúde. Estamos perdendo amigos. Estamos com o sentimento que vamos morrer ou matar quem amamos. Estamos mentalmente exaustos”, desabafa Priscila.
Paloma também aponta que é preciso melhorias para que consiga exercer sua profissão de forma mais plena. “Diariamente esperamos do governo algum incentivo para nós profissionais. Como trabalhadora da saúde pública acredito que nosso trabalho é dentro da comunidade, e as políticas públicas deveriam viabilizar mais os trabalhos fora da unidade em si. Vejo muitos colegas trabalhando em mais de um emprego buscando melhor condição de vida e sustento”, avalia.
Enquanto na atenção primária essas trabalhadoras tentar dar conta das demandas diárias, esperam políticas efetivas dos governos para que essa pandemia não potencialize fragilidades já existentes no sistema de saúde.
“Acho adequada a política adotada pelo ministério da saúde, estado e município, o isolamento social é a solução, é necessária a ampliação dos leitos. Só acho que ao invés de construir hospital de campanha, primeiro deveriam reativar alguns hospitais desativados que estão prontos como o Sorocaba na Lapa e inaugurar o hospital da Brasilândia”, exemplifica Barbara.
Enquanto dura a quarentena…
Pode soar exagerado comparar essa pandemia a uma guerra, assim como igualar essas trabalhadoras a soldados que estão na linha de frente de uma batalha. O fato é que essas mulheres encaram todos os dias como se estivem indo para o front, tendo como inimigo não apenas o vírus, que se espalha rapidamente, mas também as próprias incertezas, diante de um sistema de saúde, que ainda está se estruturando para enfrentar essa doença.
*O nome foi modificado para preservar a identidade da fonte
*Unidade de saúde não especificada a pedido da fonte
Este conteúdo faz parte do projeto #SalveCriadores , uma iniciativa que, a partir do apoio a coletivos e criadores de conteúdo das periferias de São Paulo, vai trazer reflexões e dados sobre a crise do COVID-19 e seus reflexos nas populações negras e periféricas. O projeto, desenvolvido pela Purpose, busca reforçar o importante trabalho que vem sendo feito por criadores de conteúdo e trazer pontos de vista e perspectivas que ainda não foram levantados. Os coletivos que fazem parte dessa iniciativa são o Alma Preta, o Nós, Mulheres da Periferia, a Periferia em Movimento e a Rádio Cantareira. Os conteúdos serão publicados nos canais de cada coletivo e divulgados nas redes sociais do Cidade dos Sonhos.
Texto: BIANCA PEDRINA | 14/04/2020