Vida, escrita e Paulo Freire

por Simone Preciozo
Acredito que cada fase da vida humana tem seus encantos. As sociedades, em geral, costumam enternecer-se com a infância. Algumas pessoas têm grande empatia pela velhice, e o cuidado que ela inspira. Entretanto, é quase um consenso que a fase da vida chamada adolescência, surgida a partir do século XIX, parece a mais conturbada e menos apreciada pela maioria dos adultos em fase produtiva (força hegemônica das opiniões sobre o mundo).
Na educação não é diferente. Encontrei grandes professores que verbalizavam um certo desconforto com os adolescentes. Outros nem se davam conta da dificuldade que enfrentavam para aceitar a interação. Como se o problema estivesse todo com as criaturas que eclodem em hormônios e frases desagradáveis. Fácil não é. Inclusive para os pais. É comum perder-se o canal de diálogo nessa fase, sendo este recobrado em outra, ali adiante.
Vou me ater ao ato educativo intencional que acontece nas escolas, porque é ali que parece ser o lugar de maior dificuldade. Atualmente, pauta para narrativas no cinema, análises em podcasts especializados, conversas com psicólogos. A escola mudou. O mundo mudou. Mesmo com toda a mudança, há uma concepção de mundo e educação que ainda tem feito a diferença.
UMA PROFESSORA DE ESCOLA PÚBLICA

Conhecer uma professora (ou educadora) que pauta o seu fazer com o legado de Paulo Freire é uma enorme alegria. Para mim, para todos a sua volta, mas principalmente, para os adolescentes e jovens que têm essa oportunidade. Conheci a Marília Moreno fora da escola, em um movimento social. Dia desses conheci e reconheci nela a professora. Resolvi trazer para esta nossa conversa, como uma fonte de inspiração.
Marília atua na rede municipal de educação de São Paulo e desenvolveu um projeto em 2023 denominado “Oficina de Escrita Criativa”. O que talvez a tenha surpreendido durante o processo, foi o alcance e a importância que o trabalho atingiu na vida dos adolescentes do chamado Ciclo Autoral (7º ao 9º ano do Ensino Fundamental). Nascia então um canal de expressão para além dos muros da escola, o perfil do Instagram @_atravesdenos_ Marília conta com o perfil @textos de marília, também no Instagram / e com a newsletter textosdemarília.medium.com. Nos primeiros perfis você encontra o trabalho e o pensamento da professora. Na newsletter, um apanhado de textos de outros autores compartilhados por Marília.
Um trabalho freireano na sua essência é um trabalho que dá voz e vez ao ser humano. Assim, no relato da professora, encontramos o conceito de práxis, tão caro a Paulo Freire, defendido por Condini (2023) e citado por Marília nos Cadernos de Educação (2025):
(…) a oficina livre de escrita criativa apreciou e se inspirou em escritoras brasileiras e serviu para relembrar e empoderar estudantes a valorizar a sua própria produção e a sua própria voz, usada também nas leituras compartilhadas em voz alta de seus textos com apenas uma importante regra: não depreciar ou justificar o próprio texto. o esforço deste exercício é a essência da oficina, pois a partir da não depreciação, estudantes passam a se apropriar de seus pensamentos e sentimentos criativamente, se orgulhando de suas produções sem o medo de serem julgadas como escritoras menores ou desintelectualizadas. (Moreno, 2025.p. 34)
A própria Marília exerce o direito de se expressar nas redes, com a autoridade de quem se sabe capaz de contribuições. Então, formou-se nesse espaço, virtual e no espaço real uma comunidade de escritores que também são leitores e fazem da língua escrita mais do que um instrumento técnico para aprendizagem, também espaço de escuta e expressão terapêuticas.
O MOVIMENTO DE ALFABETIZAÇÃO (MOVA), SEGUNDA FASE DO PROJETO
Marília ainda realizou projeto semelhante com alunos do MOVA em 2024, experiência por ela relatada nos perfis do Instagram e no artigo contido nos Cadernos de Educação (Moreno, 2025). Nesse caso, novamente como educadora que aprende com seus educandos, constatou que o alcance de um trabalho de expressão de pensamento através da escrita pode levar pessoas historicamente silenciadas ao compartilhamento de seus próprios enredos, enquanto se alfabetizam.
Ao final do texto “Inquietações e silêncio” (Moreno, 2025), Marília convida a não nos conformarmos com o silenciamento de adolescentes e jovens, defendendo que o processo de dar voz a esse público passa pelo resgate de nossa própria voz. Um trabalho que expressa totalmente o conceito de práxis freireana e nos devolve a humanidade.

CONDINI, Martinho. Educar para a liberdade na práxis freireana. In: Cadernos Temáticos. São Paulo: Coletivo Paulo Freire, 2023.
MORENO, Marília. In: Cadernos de Educação. São Paulo: Coletivo Paulo Freire, 2023.