Samá – Cia de Teatro destaca o povo da periferia em novo espetáculo

“Gato de Rua Não Aprende a Viver Preso” é o mais recente espetáculo teatral que a Samá – Cia de Teatro tem apresentado em diferentes locais de São Paulo. Os detalhes da peça e dos propósitos de atuação deste coletivo de teatro popular e periférico da Brasilândia foram contados por Thiago dos Santos, integrante do grupo, em entrevista na edição de 6 de agosto do programa “Comunidade em Foco”, apresentado por Juçara Terezinha.
Criada em 2011 na Brasilândia, a Samá – Cia de Teatro atua com a missão de transformar memórias e vivências da quebrada, por meio de um teatro acessível, que busca não somente entreter, mas também formar, refletir e fortalecer as comunidades.
“Desde sempre, as nossas peças guardam alguma relação com a Brasilândia ou com a memória do território e com acontecimentos que dialoguem com a vida daqui. Sempre pensamos em algo que coloque a Brasilândia como protagonista”, relatou Thiago.
O mais recente trabalho

A peça “Gato de Rua Não Aprende a Viver Preso”, que estreou em 16 de agosto, tem texto e direção do próprio Thiago, e no elenco os atores Silmara Alves, Eduardo Freire, Malu Bernardo e Fábio Santos.
“A peça fala sobre desigualdade. A questão de viver preso é de pessoas que não conseguem viver a realidade fora daquilo que foi imposto para elas”, contou Thiago. “A proposta é fazer uma crítica social à realidade que é imposta pra gente que é periférico, contestar aquela ideia de que só teremos uma condição na vida, mesmo que a gente estude muito. Mas cada pessoa, a sua maneira, vai tentando buscar uma melhora de realidade, uma outra condição de vida, e neste momento lida com os conflitos para se libertar daquilo que vive. Mas será que a gente nasce pra morrer e no meio do caminho tem de sustentar o capitalismo? Sustentar esta engrenagem enferrujada?”, indagou Thiago.
No enredo, há quatro jovens, três dos quais em situação de rua. “São quatro pessoas que estão tentando se libertar da sua realidade, cada um a sua maneira. Os dois personagens masculinos – Chaveco e Bigode – moram em albergue e um deles tenta mudar de lugar a qualquer custo para tentar a vida em outro espaço; já o outro acha que consegue melhorar a vida lá mesmo. Um aceita a proposta para entrar para o crime e o outro recusa. Paralelamente, tem a personagem Carina que entra para a prostituição por entender como um caminho para mudar de vida. E a representação do Estado é a personagem Luana. Ela é filha de uma pessoa que era responsável pelo albergue municipal e herdou esse cargo. A vida dos quatro começa a mudar quando uma ex-liderança do crime organizado da região volta ao território para retomar seu controle. E daí as pessoas passam a imaginar como que vai ser dali pra frente e vão tendo reviravoltas”, detalhou o diretor do espetáculo.
Fazer teatro na periferia

Ao longo da entrevista, Thiago comentou sobre os desafios enfrentados pelos coletivos culturais na periferia. Um deles é a falta de acesso ou de orientação para acessar os editais de fomento às suas produções.
Ele também criticou o fato de que, por vezes, haja produtores que se façam presentes na periferia apenas por interesse.
“No caso dos editais de teatro, a galera fomentada vem pra cá para criar alguma contrapartida social. Vem, dão algumas oficinas, daí pegam um ator da Brasilândia para ser matéria de jornal e fazem o discurso – ‘nós estamos aqui com atores da Brasilândia’ –, só que você vai ver o restante do grupo é da Bela Vista, do centro, da Barra Funda, Pinheiros, enfim de regiões nobres. E até, às vezes, a pessoa nem é da Brasilândia, mas cria um grupo aqui, vem atuar na região só para pegar o recurso”, lamentou, dizendo que a maioria dos grupos periféricos não consegue acessar os fomentos de teatro.
Apesar dessas barreiras a serem superadas, Thiago observou que o atual governo federal tem buscado valorizar mais os coletivos periféricos como pontos de cultura, uma cenário bem diferente da política anteriormente adotada: “No governo passado, terrível, houve uma destruição do nosso fazer cultural. O governo Bolsonaro investiu naquilo que ele entendia como cultura, fez um movimento cultural em detrimento ao nosso. Ele incentivou muito a cultura mercadológica, e nossa cultura ficou jogada porque a nossa promove reflexão”.
Cultura e memória

O integrante da Samá – Cia de Teatro lembrou ainda o papel do teatro para que a memória do território não se apague e para que as novas gerações conheçam suas raízes a partir dos fatos locais e não dos estereótipos apresentados pela mídia.
“Até a galera mais jovem da Brasilândia está conhecendo a história da nossa região por meio de podcasts e não por meio da própria família”, disse, considerando que isso é parte de um grande projeto de poder que envolve o apagamento da memória dos bairros.
“A gente está na desigualdade e ela vai sendo sustentada por viés eleitoral, pois se estrutura a política para que as pessoas não tenham, por exemplo, acesso à saúde e, assim, fica mais fácil para um vereador ou vereadora dizer ‘vem aqui no meu gabinete que eu consigo uma consulta para você no hospital’, porém é direito de toda a pessoa ser atendida no hospital. Portanto, há todo um projeto político para que a Brasilândia seja o bairro mais desigual de todos”.
Juçara comentou que o teatro tem também a função de contar as histórias, fazer a relação com a vida do povo na região: “O poder público parece que esquece que somos pessoas, que somos moradores, que somos seres humanos”.
“Teatro e comunicação estão no mesmo pote, cada um do seu jeito. Na Sama, a nossa ideia é falar das memórias do bairro”, disse Thiago, recordando que uma das peças feitas anteriormente pelo grupo deu visibilidade à vida de dois jovens assassinados na Brasilândia: João Victor Oliveira Silva, morto nas imediações do Habib’s do Terminal Cachoeirinha, enquanto pedia dinheiro para comprar esfihas; e Gaby Black, encontrada morta na porta da uma UBS com um saco preto na cabeça, meses após anunciar que estava se descobrindo como uma pessoa trans.
Agenda de apresentações
A peça “Gato de Rua Não Aprende a Viver Preso” já foi apresentada no bairro da Cidade Tiradentes, na zona Leste, e na região central, e desde setembro está com agenda de apresentações no distrito da Brasilândia, com uma delas tendo sido realizada na Praça Marielle Franco, no Jardim Paulistano. Novas apresentações já estão agendadas. Programe-se e assista:
27/09, 20h – Espaço Cultural Refinaria Teatral (Rua João de Laet, 1.507, Vila Aurora);
11/10, 20h – Ocupação Artística Canhoba (Rua Canhoba, 299, Perus);
18/10, 15h – CEU Freguesia do Ó (Rua Crespo de Carvalho, 71, Freguesia do Ó).
Confira a agenda completa e mais detalhes pelo Instagram (@cia.sama)
Assiste a íntegra da live do “Comunidade em Foco” de 6 de agosto