Racismo literário: da capa à bibliografia, a exclusão marca o mercado editorial brasileiro
Leitores e autores apontam como a falta de representatividade e os altos preços criam um abismo entre a periferia e a literatura.
Caminhar pelos corredores de uma feira literária ou frequentar uma universidade pública deveria ser, em tese, um exercício democrático de descoberta. Mas, para uma grande parcela da população brasileira, esses espaços funcionam como um lembrete constante de invisibilidade. O fenômeno, debatido por ativistas e leitores como “racismo literário”, vai muito além da falta de um rosto negro na capa de um best-seller: ele dita quem é estudado, quem é publicado e, principalmente, quem consegue pagar para ler.
O estudante Guilherme, que visitou a feira literária recentemente, sentiu esse vácuo na prática. Jovem, negro, gay e vindo da periferia, ele descreve a frustração de procurar histórias que dialoguem com a sua realidade e encontrar um padrão que quase nunca muda.
“Não [me vejo representado]. Não porque eu sou um jovem alto, gay, assumido e periférico também. Então são poucos escritores. Principalmente poucos livros que retratam uma pessoa de cabelo cacheado.”
Apesar da crítica, Guilherme reconhece um movimento de mudança, ainda que lento. Ele notou que, comparando a edição do evento de 2023 com a de 2025, houve um aumento na oferta de títulos, inclusive encontrando obras enriquecedoras sobre religiões de matriz africana, como o Candomblé. Contudo, quando a discussão migra para o ambiente acadêmico, o cenário é mais árido.
Na sala de aula, a exclusão intelectual é gritante. Guilherme relata que, durante sua graduação, encontrar bibliografia escrita por intelectuais pretos é uma missão quase impossível. A ausência é sentida especialmente em áreas técnicas e específicas:
“Principalmente psicanalistas, especialistas em cognitivo comportamental, é muito difícil de ser pretos.”
Essa percepção é reforçada pela musicista Elina. Para ela, a universidade brasileira ainda opera sob uma lógica antiga, preservando um currículo que não dialoga com a diversidade do país. Ela descreve o ambiente acadêmico como um “berço de pensamento hegemônico e extremamente colonizador”. O impacto disso na vida do pesquisador negro é o apagamento histórico:
“Muitas vezes a gente como pessoas negras, por exemplo, a gente precisa começar muitas pesquisas do zero porque não existem referências nenhuma.”
Se a representatividade visual e acadêmica são barreiras simbólicas, o preço do livro é uma barreira física e intransponível. Mesmo em feiras que prometem descontos, os valores praticados continuam segregando o público. Guilherme cita preços que variam entre 50 e 80 reais como fatores determinantes para afastar quem vem da periferia, como ele.
O impacto desse custo vai além do indivíduo; ele afeta a formação de novos leitores na família. Guilherme conta que gostaria de levar livros para suas duas irmãs, mas a conta não fecha:
“Embora eu esteja aqui transitando na feira do livro, é muito difícil você ter aquele valor para comprar imediatamente. (…) A maioria dos que você precisa, principalmente para o curso, principalmente para, sei lá, para a criancinha, mesmo eu que tenho duas irmãs, é bem salgado.”
O ciclo de exclusão se completa na outra ponta: a de quem escreve. Elina, que também é poeta, carrega um sonho engavetado há duas décadas. Sem recursos próprios (“bolso próprio”) e enfrentando a burocracia restrita dos editais, ela vê o mercado editorial como um clube fechado.
“Eu tenho muita vontade de publicar meu primeiro livro num projeto que já tem 20 anos. Nunca pude fazer isso… O mercado editorial do Brasil é praticamente inexistente, é totalmente restrito às elites.”
A Central de Notícias da Rádio Cantareira é uma iniciativa do Projeto “Grêmios”. Este projeto foi realizado com o apoio da 9ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Serviço de Radiodifusão Comunitária Para a Cidade de São Paulo
