No ‘Manas e Manhãs’, a história de resistência do ‘Núcleo Memórias Carandiru’

Em 2 de outubro de 1992, a Casa de Detenção de São Paulo, no bairro do Carandiru, à época o maior presídio da América Latina, foi palco de um massacre, quando um efetivo da Rota da Polícia Militar entrou no pavilhão 9 e matou – conforme dados oficiais – 111 presos, quantidade que quem lá esteve naquele dia e ativistas de direitos humanos asseguram ter sido muito maior.
“O que houve ali não foi só uma tragédia. Foi um marco da violência institucional que o Brasil insiste em repetir”, enfatizou Helen Baum, do coletivo Núcleo Memórias Carandiru, em entrevista na edição de 27 de junho do programa “Manas e Manhãs”, apresentado por Simone Preciozo na rádio comunitária Cantareira FM.
Ao menos três vezes por mês, o coletivo promove um roteiro de Memória pelo Parque da Juventude – onde ficava a Casa de Detenção – com a proposta de não deixar que haja o apagamento histórico sobre a verdade do que houve ali, fazendo com que os participantes dessa visita monitorada – realizada gratuitamente – entendam como aquela violência do passado conecta-se com os fatos atuais.
Em 2002, houve a quase completa implosão de pavilhões. Restaram apenas os pavilhões 4 e 7, que foram transformados em escolas técnicas. O Parque da Juventude foi erguido sobre os escombros da Casa de Detenção. Entretanto, nas imediações do parque há outras unidades prisionais.
“As memórias das vidas assassinadas e das violências ali cometidas não pode ser apagada. E é justamente isso que o Núcleo Memórias Carandiru tenta resgatar, sobrevivendo a este apagamento”, insistiu Helen, que passou a integrar o coletivo em 2020, após conhecer Maurício Monteiro, que sobreviveu ao massacre de 1992.
Tentativas de apagamento

Durante as visitas monitoradas, Maurício contextualiza para as pessoas como era a Casa de Detenção e conta sobre o massacre e como conseguiu a ele sobreviver.
“Quem se propõe a fazer este roteiro de memória com a gente, geralmente já vai aberto para o diálogo, aberto a conhecer a história. As pessoas até emitem sua opinião, que nós sempre respeitamos, mas nos ouvem e nos respeitam também”, detalhou Helen. “A maioria das pessoas sai bem surpresa, porque a sociedade realmente não tem ideia do que acontece nas unidades prisionais, nem tem ideia da nossa luta para nos reinserirmos na sociedade”, complementou.
Ela também lembrou que os homens do batalhão da Rota que cometeram o assassinatos dos presos foram julgados, condenados, mas nenhum deles cumpriu a pena. Além disso, ao longo do Parque da Juventude há poucas referências de que ali um dia existiu a Casa de Detenção e de que houve os assassinatos de 1992, algo que, segundo Helen, trata-se de um apagamento intencional: “É muito perigoso a gente cultivar a impunidade no nosso País. Então, para quem serve as leis punitivas? Para pessoas pobres e periféricas. Ela não atinge a classe média alta”.
Simone Preciozo observou que a formação dos policiais continua muito parecida ao que era naquela época, o que representa um risco para a ocorrência de novos massacres. Além disso, segundo ela, o Estado continua a cometer barbáries, e agora conta com o respaldo de parte significativa da população.
Sobrevivendo ao encarceramento

Helen também já esteve encarcerada. Foi entre 2013 e 2017, após ser sentenciada por tráfico de drogas. Ela, na verdade, era viciada em crack, vivia nas ruas do centro e um dia foi presa. Entre 2017 e 2019, cumpriu o restante da pena em regime aberto, mudou-se para a Praia Grande (SP) e em 2022 regressou à capital paulista, disposta a transformar tudo o que viveu em força para mudança social.
“Nós, sobreviventes do cárcere, temos de falar das nossas histórias, temos de deixar de ser objetos de pesquisa para sermos sujeitos da pesquisa”, defendeu Helen. “Temos de ter voz, falar por nós mesmos”.
Uma das situações recorrentes na vida de uma pessoa que um dia esteve presa é lidar com uma dívida financeira impagável com o Estado brasileiro.
“Quando nós recebemos uma sentença, também recebemos uma pena de multa. E quando a gente sai do sistema, temos de pagar essa multa, que pode ser de R$ 5 mil, R$ 20 mil, R$ 100 mil. Nós falamos disso no roteiro. Mas me diga: quem sai com dinheiro da unidade prisional para pagar esta pena de multa?”, destacou, lembrando que quem não salda esta dívida fica com nome sujo e acaba tendo dificuldades para conseguir um emprego ou moradia. “Qual porta que está aberta para nós? O próprio Estado empurra a gente para a reincidência criminal”, disse.
Um peso ainda maior para as mulheres
“Costumo dizer que entrei no sistema dependente química e sai uma criminosa em potencial. Lá dentro, sofremos tantos maus tratos, vemos tantas pessoas sendo torturadas, outras morrendo ou se suicidando, que a gente acaba naturalizando a tortura e a morte. A gente sai muito embrutecido de lá. Eu faço terapia até hoje”, detalhou Helen. “Eu saí de lá o ‘cão’. Sai com ódio, revoltada. Só que eu transformei esse ódio, essa raiva, em luta, mas só consegui isso porque tive rede de apoio”.
Helen destacou ainda que quando uma pessoa é presa também sua família acaba sendo criminalizada: “A gente costuma falar que os familiares também ‘tiram cadeia’, sofrem tortura psicológica. Os familiares dos presos acabam sendo pessoas encarceradas também”.
Simone recordou que muitas mulheres presas são abandonadas por seus núcleos familiares
Helen recordou que foi presa quando seu filho era pré-adolescente e que nunca quis que ele a visitasse na prisão, por causa da revista vexatória que teria de passar. “Por isso, ter as saidinhas foi primordial para que eu procurasse meu filho, pedisse perdão a ele por toda a situação gerada por eu ser usuária de droga. Portanto, a saidinha foi primordial para a reconstrução do laço materno.
Ela destacou que 80% das mulheres estão presas em razão do tráfico de drogas: “É muito comum encontrar mulheres que sofrem com a dependência química, que são jogadas dentro da unidade prisional sem nenhum tipo de tratamento. Eu, por exemplo, só consegui tratamento de desintoxicação porque sou uma mulher branca. Outras mulheres negras que foram presas junto comigo não receberam o mesmo tratamento, assim, não há como falar de sistema prisional sem falar de racismo”.
“Há ainda as mulheres que se envolveram no tráfico por conta do companheiro, pois muitas acabam assumindo o papel dele no tráfico para poder sustentar o marido dentro da cadeia e os filhos”, explicou.
Helen lembrou que 63,5% das mães presas são negras, chefes de família e moradoras da periferia. “Quando o Estado prende essas mulheres, ele não se responsabiliza por suas crianças. Elas ficam abandonadas nas favelas e acabam entrando no socioeducativo [Fundação Casa] até por questão de sobrevivência. Portanto, o que o Estado faz é gerar um ciclo de encarceramento em massa das pessoas negras. Na minha visão, isso é um projeto da continuidade da escravização total dessas pessoas. Então, é hora de parar e refletirmos todos: o que é este sistema prisional e para que ele serve?”.
Ela também criticou os projetos de privatização das unidades prisionais, pois as empresas privadas visam o lucro: “Quanto mais cabeça lá dentro [na prisão], mais lucro terão, o que fará qualquer um estar exposto a ingressar nas unidades prisionais, a ser preso e a ser torturado”.

Como ir a um roteiro de memória?
Interessados em participar de uma visita guiada do Núcleo Memórias Carandiru podem se informar sobre as datas pelo Instagram (@memoriacarandiru) ou mandar um e-mail para esducadoresmemoriacarandiru@gmail.com. O ponto de encontro para as visitas é sempre na Entrada principal do Parque da Juventude (Avenida Cruzeiro do Sul, 2.630, Carandiru, ao lado da estação do metrô).
Abaixo, assista a íntegra da edição de 27 de junho do programa “Manas e Manhãs”, que vai ao ar sempre às sextas-feiras, das 10h às 12h, com reprise aos domingos, das 9h às 11h.