Nego Zé: ‘Defender a bandeira do rap não é fácil, então precisa ser papo reto’

Músico há 28 anos, Nego Zé traz em seu rap os sentimentos e fatos do seu dia a dia, especialmente o que vivencia na favela do Heliópolis, na zona Sul de São Paulo.

No sábado, 15 de março, Nego Zé atravessou os cerca de 45km que separam o Heliópolis da Brasilândia para ser entrevistado na rádio comunitária Cantareira FM por Beto Souza e Rubens Andrade no programa Revista da Semana, desta vez com a participação especial de Anderson Braz, apresentador do programa Amizade Aberta, e de Badega Silva, locutor e diretor da rádio comunitária Heliópolis.

Do palco improvisado ao clip com mais de 500 mil visualizações

Nego Zé, Rubens Andrade e Beto Souza

Nego Zé recordou a primeira vez que cantou rap para um grande público. Foi no dia em que seus primos subiram em um palco improvisado e ele decidiu que poderia cantar também.

“Eles me olharam e falaram: ‘Nego Zé, você sabe cantar?’. E eu falei, ‘não sei, mas invento’. Eu vi que eles iam rimando, falando, pensei: ‘Isso é ‘fácinho’! Mas não foi fácil não!’ Aliás, eu nem era Nego Zé naquela época, eu era o Zé do Pensamento Leal”.

Assim que ele soltou as primeiras rimas, ouviu vaias e risadas. Cabisbaixo, deixou o palco e voltou para sua casa. 

“Eu era moleque. Cheguei em casa e pensei: ‘Não vou subir mais em diacho de palco não’. Passou um tempinho, chegou uma prima minha e me pediu um autógrafo, mas eu disse que todo mundo tinha me zuado, rido da minha cara. ‘Não vou dar autógrafo não’. E ela disse: ‘Hoje eu quero um autógrafo seu, porque você estava lá representando a nossa comunidade’. Eu abaixei a cabeça e assinei: Anderson, Zé. Ela pegou e disse: ‘Isso aqui vai ser uma relíquia’”.

Com o tempo, os primos voltaram a convidá-lo para compor música. Ele resistiu um pouco, mas aceitou e, assim, seguiu na carreira: primeiro participando de grupos que já existiam, depois montando o seu próprio. Desde 2006, com o apoio da família, Nego Zé está em carreira solo.

Badega e Nego Zé

“É difícil e agradeço muito ao pessoal da rádio Heliópolis. Se não fosse por eles, eu não chegaria aqui. Também se não fosse pela ajuda do meu pai, da minha família, dos meus irmãos, da minha mãe, eu não estaria aqui hoje. Quantas vezes eu pensei em desanimar, mas não desisti”, comentou Nego Zé. “Tem que ser assim: persistir e resistir”, complementou.

A carreira de Nego Zé é marcada por sucessos como “Sacomé”, cujo clipe tem a participação de muitas pessoas de sua comunidade; “Me dê a sua mão”, que conta uma história de amor; “Mãe Terra”, com alusões às suas raízes indígenas; e “Sofrimento da nossa nação”, que fala do cotidiano sofrido e de superação de quem vive na periferia.

Seu o maior sucesso até agora é a música “Heliópolis”, cujo videoclipe foi gravado na própria comunidade. Nele, o rapper fala de onde cresceu e de tudo que ali aprendeu e vivenciou até hoje.

“Pra gravar essa música, levou uns três meses. Eu chorava no estúdio. É uma música que fala tudo sobre mim”, comentou Nego Zé sobre a canção, que hoje tem mais de meio milhão de visualizações no YouTube.

Defender a bandeira do rap

Com quase três décadas como rapper, Nego Zé comenta sobre as dificuldades que esta expressão artística enfrenta ainda hoje no Brasil.

“Defender a bandeira do rap não é fácil, então precisa ser papo reto. Hoje, aceitam mais o funk, o forró, o pagode, que tocam mais do que o rap. Talvez porque o rap muitas vezes não é feito para ser dançado, mas sim pra transmitir uma mensagem às pessoas, trazer a realidade das coisas”, enfatizou.

Nego Zé se define como um “rapper das antigas, um rapper raiz” e lamenta que os rappers da nova geração estejam esquecendo da essência do que o rap representa.

Comunicadores entrevistam Nego Zé na Cantareira FM

“A música que eu trago não tem palavrão nem traz coisas que vão ofender alguém. Ela pode ser ouvida da criança ao idoso. A molecada de hoje que faz rap muitas vezes fica só na ostentação e se esquece que a comunidade precisa ser ouvida, que é preciso que se escute o trabalhador, e que se fale que na comunidade tem gente honesta. Muitos que estão fazendo rap hoje só querem falar de ostentação. E não digo isso como uma crítica, pois cada um tem uma maneira de se expressar, mas eu prefiro falar da minha comunidade, da minha quebrada”, comentou.

Por fim, Nego Zé pediu que as pessoas da própria comunidade valorizem os artistas locais: “Hoje, tenho 35 mil inscritos no meu canal. Pergunte quantos da minha quebrada me seguem… Tenho certeza de que são muitos, mas não o suficiente para o tamanho do Heliópolis, que tem 250 mil habitantes. A gente não pede um centavo para ninguém, só pede pra que sigam a gente”.

A força da rádio comunitária

Anderson Braz, Nego Zé, Beto Souza, Badega Silva e Rubens Andrade

A visita de Nego Zé à Cantareira FM também foi ocasião para se destacar a força das rádios comunitárias em dar voz às comunidades e aos artistas locais.

“As rádios comunitárias dão espaços para talentos que hoje nas rádios comerciais não encontram espaço”, comentou Badega Silva. “Essa união entre as rádios comunitárias é fundamental, pois mesmo outorgado a gente ainda é discriminado”, prosseguiu o diretor da rádio comunitária Heliópolis.

Beto Souza, Rubens Andrade e Anderson Braz ressaltaram que as rádios comunitárias em toda a cidade compartilham da mesma missão, por isso há entre aquelas que verdadeiramente fazem comunicação comunitária um espírito de irmandade e não de concorrência. “Nós trabalhamos juntos por uma causa por isso é fundamental essa integração entre as rádios”, disse Rubens.

Abaixo, veja a íntegra da edição de 15 de março do programa Revista da Semana, que sempre vai ao ar aos sábados, das 10h às 12h, com reprise aos domingos, das 14h às 16h, na rádio comunitária Cantareira FM.