‘Não fomos avisados de nada… falaram que a gente era lixo’

O relógio se aproximava das 6h da terça-feira, 24 de junho, um dos dias mais frios deste ano em São Paulo. Na ocupação instalada em um terreno entre as ruas Colina do Jaraguá e Capela da Lagoa, no bairro Capela da Lagoa, na zona Noroeste, parte dos moradores já se deslocava para o ponto final do transporte público para ir trabalhar, enquanto muitos outros – adultos, idosos, mulheres grávidas e crianças – ainda dormiam em seus barracos.

“No ato da covardia, nós fomos acordados de uma forma horrível. Não tivemos tempo de pegar nossos móveis, nossas roupas, nem nossos documentos”, relatou Graciella Conceição, moradora da ocupação que foi destruída na suposta ação de reintegração de posse, ainda que as 987 famílias que ali viviam não tenham sido avisadas previamente sobre a reintegração, como determina a lei. Sequer a ordem judicial foi a elas apresentada.

“Deveriam ter dado pra gente um tempo pra sair, 10, 15 dias, mas isso não aconteceu”, disse Graciella em entrevista ao programa “Comunidade em Foco”, da rádio comunitária Cantareira FM, na quarta-feira, 25, apresentado por Juçara Terezinha e Adão Alves.  

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TRUCULÊNCIA

Desde o fim da madrugada do dia 24, conforme relataram os moradores, os micro-ônibus da linha Capela da Lagoa já estavam tendo o itinerário desviado, a fim de facilitar a chegada da Polícia Militar e dos agentes da Prefeitura, para cercar a área e forçar a saída das pessoas da ocupação.

“Quando essas lotações começaram a ser desviadas, muita gente estava saindo para trabalhar, e o pessoal já voltou correndo para avisar a gente. E o que a gente pensou na hora foi de fazer uma barreira para dar tempo de pegar nossos documentos, salvar alguma coisa, porque não fomos avisados de nada”, detalhou Graciella.

Ela explicou, ainda, que como os fios elétricos que alimentavam a ocupação foram cortados, os moradores fizeram fogueiras para não ficarem completamente no escuro. Na grande imprensa, as imagens apresentadas foram somente a de veículos e entulhos em chamas.

“Não resistimos a desocupação em momento algum. A gente ficou sentado no chão, mas [os policiais] saíram puxando as pessoas pelos cabelos, pelo braço. Falaram que a gente era lixo e que teria de ficar no lixo”, relatou Graciella.

“Eles saíram batendo nos adultos, nos senhores de idade e até nas crianças. Eu, inclusive, fui parar o hospital convulsionando, devido a uma bomba que jogaram no meu pé. E um bombeiro teve ‘a coragem’ de pegar a mangueira e me dar um jato de água fria, machucando toda a minha perna, está toda roxa”, prosseguiu.

“Não temos para onde ir. Fomos jogados na rua, estamos dormindo em uma associação. Perdemos nossos documentos, roupas e móveis”, lamentou.

O QUE ALEGAM A PREFEITURA E A PM?

A justificativa da Prefeitura de São Paulo para a reintegração de posse é que o terreno está em uma área de preservação ambiental, dado que é contestado pelos moradores.

A ação ocorre na semana em que o Coronel Mello Araújo, vice-prefeito, está a frente do Executivo Paulistano, já que Ricardo Nunes cumpre agenda em Roma, incluindo uma audiência com o Papa Leão XIV, realizada no dia 25, na qual, conforme vídeo compartilhado pela própria Prefeitura, o prefeito nada falou sobre a situação dos mais vulneráveis da cidade.

A ocupação começou em outubro do ano passado, no terreno que estava completamente abandonado e sujo. Graciella contou que nos últimos meses, as lideranças procuraram a Prefeitura para negociar e acionaram a Defensoria Pública. “A Defensoria pediu para a secretaria municipal de habitação ir nos visitar, mas não tivemos resposta”, ressaltou Graciella, dizendo que nenhum cadastro sobre a condição das famílias foi feito ao longo destes nove meses.

Em nota à imprensa, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo disse que 100 agentes da Polícia Militar, incluindo equipes da Tropa de Choque, atuaram na ação para desocupar o terreno e que “houve comportamento hostil de alguns moradores”, o que levou a PM a intervir.

Nos vídeos a seguir, obtidos pela rádio comunitária Cantareira FM, o que se mostra, no entanto, são os moradores em atitude pacífica e sentados ao chão e, depois, um policial atirando com bala de borracha em um dos barracos.