‘Manas e Manhãs’ apresenta a vida de Dom Helder Câmara

Um dos principais expoentes da Igreja Católica no Brasil pós-Concílio Vaticano II, Dom Helder Câmara (1909-1999) faleceu há 26 anos, mas sua trajetória continua a inspirar gerações não somente sobre as questões de fé, mas também na luta por um mundo mais justo.

Nascido em Fortaleza (CE), o frade franciscano viveu por 36 anos no Rio de Janeiro, tendo sido Bispo Auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro entre 1952 e 1964, e depois Arcebispo de Olinda e Recife (PE) até 1985, tendo falecido na capital pernambucana, aos 90 anos de idade. Em 2017, por meio da lei federal 13.581, foi declarado Patrono Brasileiro dos Direitos Humanos.

A vida e o legado de Dom Helder Câmara foram tratados na edição de 18 de julho do programa ‘Manas e Manhãs’, da rádio comunitária Cantareira FM, apresentado por Simone Preciozo, que entrevistou o professor Martinho Condini, autor de livros sobre Dom Helder, e a Irmã Ivone Gebara, que esteve próxima do Bispo em sua passagem pela Arquidiocese de Olinda e Recife.

O DEFENSOR DA DIGNIDADE DE TODOS

Simone Preciozo destacou, inicialmente, que Dom Helder foi um homem da esperança, não só pela via religiosa, mas também por propagar uma fé ativa.

O professor Martinho recordou que desde a adolescência se interessou pela figura de Dom Helder, pode entendê-lo melhor nos anos 1980, durante o movimento das Diretas Já, e o estudou em sua dissertação de mestrado, na qual tratou de Dom Helder como ativista social e preocupado com os mais excluídos.

Irmã Ivone ressaltou que Dom Helder tinha a convicção de que “as mulheres deveriam estar presentes nas grandes decisões da Igreja. Ele não rompia com a linguagem eclesiástica, que privilegia os homens, porém, as mulheres na vida dele tiveram um papel fundamental”.

A religiosa recordou, ainda, que em Recife Dom Helder sempre apoiou os projetos populares e de educação liderados por mulheres. Ela própria contou com grande confiança do Bispo que a nomeou a primeira mulher professora de Teologia fundamental e vice-diretora do Instituto de Teologia de Recife (ITR).

“Dom Hélder não tinha feminismo teórico nem filiação feminista, mas tinha comportamentos que mostravam o igualitarismo de gênero que ele era capaz de viver, reconhecendo a capacidade das mulheres de seu tempo”, comentou a Irmã.

PROPAGADOR DAS IDEIAS DO CONCÍLIO VATICANO II

Professor Martinho recordou que no começo dos anos 1960, havia um grupo de bispos e padres progressistas na Igreja Católica, entre os quais Dom Helder, que foram para o Concílio Vaticano II já levando consigo ideias de mudanças e de transformação na Igreja. Na assembleia conciliar, Dom Helder conversou com religiosos de outros continentes “para construir aquilo que ele chamava de Igreja dos Pobres. E ele dizia aos religiosos dos países do primeiro mundo, que as igrejas dessas nações tinham de ajudar financeiramente os religiosos da África, da Ásia e da América Latina”.

Para concretizar os ideais dessa “Igreja dos Pobres”, Dom Helder ajudou a criar o movimento do “Pacto das Catacumbas”, um documento assinado por cerca de 40 padres conciliares em 16 de novembro de 1965, pelo qual se comprometiam a levar uma vida de pobreza, rejeitar todos os símbolos ou os privilégios do poder e a colocar os pobres no centro do seu ministério pastoral. Essas ideais ressoaram em toda a Igreja na América Latina no pós-concílio, estando no centro das discussões da Conferência de Medellín, em 1968, e dando origem às reflexões da Teologia da Libertação, com a ideia de central de fazer a Igreja povo de Deus, sempre ao lado dos mais pobres.

Irmã Ivone lembrou que Dom Helder sempre esteve perto do povo: “Ele andava com aquela batina bege o tempo todo, e se precisasse, tirava o sapato ou pisava na lama para visitar comunidades marginalizadas”.

TENTATIVAS DE SILENCIAMENTO

Quando teve início a ditadura militar em 1964, Dom Helder já havia sido transferido para a Arquidiocese de Olinda e Recife. Segundo o professor Martinho, isso ocorreu por pressão das alas conservadoras da Igreja que buscavam calar a voz profética do Bispo que se colocava em favor dos mais pobres, algo que já ressoava intensamente no Rio de Janeiro, então capital do Brasil.

“A ida de Dom Helder para Recife, no mesmo ano do golpe militar, foi surpreendente. Recife deu a Dom Helder uma importância nas atividades que ele realizava, de modo que lá ele se tornou uma liderança religiosa e dos movimentos”, analisou o professor, destacando que a amizade do Bispo com o Papa Paulo VI foi fundamental para que não fosse assassinado, ainda que muitas pessoas a sua volta, especialmente padres mais progressistas, tenham sido mortos pelo regime militar.

O governo militar também impôs censura a Dom Helder, impedindo-o de falar em público por ser considerado comunista e subversivo. No entanto, a ele foi permitido falar pela rádio da Arquidiocese de Olinda e Recife, o que fez toda a diferença para que se mantivesse próximo ao povo, nas edições pela manhã e pela noite de seu programa de rádio.

“Esses programas de rádio foram o alimento evangélico que ele passava para as comunidades. Depois de ouvi-lo, nós ficávamos conversando sobre o texto do Evangelho e sobre o que ele tinha falado e, com isso, se formavam grupos de apoio das comunidades”, detalhou a religiosa. Todos estes programas transmitidos pela Rádio Olinda estão no acervo do Centro Dom Helder Câmara.

Irmã Ivone recordou, ainda, que nas viagens internacionais que realizava, Dom Helder denunciava as atrocidades do regime militar no Brasil: “A ditadura calou a voz dele publicamente, mas ele denunciava as situações que estavam acontecendo quando realizava as viagens internacionais. Ele foi um homem que apresentou ao mundo o que foi a tortura e as prisões no Brasil”.

JUSTIÇA SOCIAL

Simone Preciozo destacou ainda a figura de Dom Helder como promotor da economia solidária, já na década de 1950 no Rio de Janeiro e depois em Recife.

Irmã Ivone lembrou que, no Rio de Janeiro, Dom Helder conduziu um projeto habitacional, e no Recife fez a “Operação Esperança”, que viabilizou o acesso a terra às pessoas mais pobres, para que fossem donas de pequenas propriedades de terra, tendo de um teto, um modo de subsistência e um trabalho digno.

Professor Matinho recordou que a preocupação de Dom Helder com as questões fundiárias começou já no Rio de Janeiro, ao ver tantas pessoas morando nas favelas, tendo criado a Cruzada São Sebastião, que entre outros frutos resultou na construção de um conjunto habitacional no bairro nobre do Lebron, com 10 prédios e 910 apartamentos, para que os operários morassem perto de seus locais de trabalho.

Dom Helder levou consigo para Recife toda esta experiência e lá “em função de uma grande inundação em 1965, criou a Operação Esperança, com qual iniciou um trabalho social urbano, e se envolveu nessa questão de justiça na questão fundiária, com a preocupação de que os camponeses tivessem a sua propriedade”, disse Martinho.

O professor recordou, ainda, que Dom Hélder até discutiu a desapropriação de terras da própria Igreja para fazer a reforma agrária, e que com o dinheiro que ganhou de premiações internacionais comprou terras em Pernambuco para que se viabilizassem locais de produção a pequenos agricultores: “Ele tem muitos escritos e reflexões falando que a terra é para todos e lembrando que Deus construiu o planeta terra para todas as pessoas dela poderem desfrutar”.

PARA CONHECER MAIS SOBRE DOM HELDER

Ao final da live, professor Martinho e Irmã Ivone recomendaram duas produções para que as pessoas possa melhor conhecer Dom Helder.

Uma delas é documentário “Utopias peregrinas: Dom Helder Câmara” que conta a história do Bispo, seu legado e sua importância na atualidade, destacando a opção preferencial de Dom Helder pelos mais pobres.

Também recomendaram que a leitura da “Sinfonia dos Dois Mundos”, uma poesia em que Dom Helder faz uma reflexão da relação dos países capitalistas com os países do terceiro mundo e como o povo das nações mais pobres podem enfrentar essa injusta relação. Segundo Irmã Ivone, Dom Helder lembra que existe um mundo só, mas que foi dividido pelos homens: “Ele enfatiza que a humanidade só sobreviverá como humanidade se nós tocarmos uma sinfonia coletiva de respeito às vidas múltiplas que constituem o planeta”.

Por fim, Irmã Ivone recordou que Dom Helder se valia de muitas fábulas para se comunicar com o povo mais simples, uma prática que precisa ser mais valorizada e imitada: “As igrejas e nós, teóricos, temos de voltar a uma simplicidade de linguagem para nos fazermos entender e sermos, como Dom Helder, educadores do respeito mútuo e do respeito à terra”.

ASSISTA A ÍNTEGRA DA LIVE DO PROGRAMA MANAS E MANHÃS DE 18/07