Há 45 anos, o povo resistiu à ‘Pancadaria da Freguesia do Ó’ e conquistou melhorias

No sábado, 21, a partir das 10h, com concentração no número 200 da Rua Léo Ribeiro de Moraes, esquina com a Rua da Balsa, na Freguesia do Ó, se fará memória de um dia em que a voz do povo da periferia na busca por melhorias em suas condições de vida saiu fortalecida após um ataque atroz do governo paulista e da prefeitura paulistana.

Era o dia 21 de junho de 1980, em meio à ditadura militar, sob o governo estadual de Paulo Maluf e a gestão de Reinaldo de Barros, na prefeitura, ambos indicados pelos militares. Ciente da vinda das autoridades, a população se organizou para reivindicar melhorias nos serviços públicos e de infraestrutura nos bairros, mas foi brutalmente reprimida por agentes à paisana, armados com cacetes, com técnicas de soco inglês e uso de bombas de gás lacrimogêneo. Mulheres, crianças, adultos, religiosos e parlamentares foram feridos no episódio que ficou conhecido como a “Pancadaria da Freguesia do Ó”.

Passados 45 anos, o ato do sábado fará memória da luta popular reprimida na “Pancadaria” e reivindicará melhorias em políticas públicas. A edição de 18 de junho do programa “Comunidade em Foco”, da rádio Cantareira FM, apresentado por Juçara Terezinha e Adão Alves, conversou com pessoas que organizam o ato e que são testemunhas vivas do fatídico 21 de junho de 1980.

Maria Cícera: ‘Tínhamos muitas coisas que precisavam ser feitas’

Maria Cícera de Salles tinha 25 anos quando começou a participar dos movimentos sociais. Ela recordou que a manifestação de 21 de junho de 1980 foi pensada com os moradores da Brasilândia e da Freguesia do Ó, tendo por objetivo entregar ao governador e ao prefeito um documento com as reinvindicações, já que ambos estariam naquele dia na sede da Administração Regional da Freguesia do Ó, no local de onde partirá a caminhada de sábado.

“Na época, não tínhamos saúde, educação, asfalto. Tínhamos muitas coisas que precisavam ser feitas, por isso queríamos entregar o documento”. Ela lembra que toda aquela mobilização deixou muitos aprendizados.

“A gente entendeu o quanto é importante estarmos participando das coisas, pois governo nenhum cede nada para ninguém, é preciso arregaçar as mangas e força a barra para indicar o que queremos”.

Jabes Campos: ‘Iríamos em caminhada, em paz, sem violência’

Jabes e Hilda na tela maior

Jabes Campos explicou que o governo de Paulo Maluf sempre realizava a ação “Governo Itinerante”, pela qual ia aos bairros com toda a sua comitiva. Os moradores souberam antecipadamente que o governador e o prefeito viriam à Freguesia do Ó e se organizaram para, pacificamente, fazer suas reivindicações.

“Eu me lembro que foram 36 comunidades que se reuniram para discutir a pauta das necessidades da região e entregar estas demandas ao governador. Decidimos que iríamos em caminhada, em paz, sem violência, como nos ensinou o Frei Alamiro, e nessa caminhada íamos pedir por acesso a água e saneamento básico, transporte, asfalto nas ruas, saúde, educação. Queríamos apenas apresentar nossas reivindicações”.

Jabes destacou que após a “Pancadaria”, Dom Alfredo Novak, à época bispo auxiliar da Arquidiocese de São Paulo na Região Lapa, reuniu-se com todos os afetados para saber o que havia acontecido e incentivou as pessoas a denunciar a violência que sofreram e lutar pelas pautas indicadas.

Padre Aécio: a Igreja estava ao lado das lutas sociais

Atualmente sacerdote, Aécio Cordeiro era um jovem engajado na Pastoral da Juventude na época da “Pancadaria da Freguesia do Ó”. Ele destacou que os jovens católicos na região começaram a ter contato com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os documentos do Concílio Vaticano II, e assim foram se despertando para as causas sociais em favor do povo.

Padre Aécio ressaltou a atuação do Frei Alamiro para essa conscientização, bem como o fato da força das Comunidades Eclesiais de Base e dos ideais da Teologia da Libertação, criando, assim, um ambiente favorável à união do povo para as lutas sociais, com o apoio de sacerdotes e religiosas.

Hilda Carolina: 3 hospitais conquistados

No fim dos anos 1970 e início dos anos 1980, Hilda Carolina participava dos movimentos de moradores da Vila Brasilândia. Ela recordou que naquele 21 de junho cerca de 2 mil pessoas foram à manifestação na Rua da Balsa e que ninguém arredou o pé, mesmo diante das intimidações prévias.

Hilda contou que a comunidade sabia que o governo do estado tinha recebido uma verba estrangeira e as pessoas da periferia desejavam que parte do recurso fosse destinado para a construção do pronto socorro.

“Na época, só havia a maternidade da cachoeirinha e o Hospital Nossa Senhora do Ó, na Avenida Itaberaba. E, mais distante, o Hospital do Mandaqui. Mas na região não existia pronto socorro algum”, recordou, celebrando que três hospitais que sairam do papel nos anos que se seguiram estavam no documento de reivindicação dos moradores: os hospitais gerais da Cachoeirinha, de Taipas e do Penteado, além do Pronto-Socorro 21 de Junho, atual UPA 21 de Junho.

Márcia Barral: Lembrar para prosseguir na luta da democracia

Márcia Barral

Na época da “Pancadaria da Freguesia do Ó”, Márcia Barral era assessora parlamentar e já atuava nos movimentos de moradia.

“O governo itinerante um mês antes foi a Campo Limpo e o Maluf foi vaiado por lá, e já havia previsão de que ele enfrentaria resistência aqui na Freguesia, e ele queria evitar as vaias a todo custo”, lembrou Márcia.  Ela ajudou as pessoas a organizarem a manifestação e atuou para proteger crianças e mulheres que estavam sendo alvo das ações da polícia naquele 21 de junho.

“É muito importante relembrarmos este episódio para prosseguirmos com as nossas lutas pela democracia”, comentou, lembrando que a população à época lutava de modo intenso por saneamento básico, asfalto nas ruas e atendimento de saúde mais próximo.

Teresa Lajolo: A ‘Pancadaria’ virou notícia internacional

Teresa Lajolo

Entre 1969 e 2015, a professora Teresa Lajolo lecionou em escolas da Vila Brasilândia, região para qual se mudou em 1975. No dia da “Pancadaria”, Teresa ajudou a levar pessoas para a manifestação popular, mas como estava grávida, aguardou pelo desenrolar dos atos no Largo do Clipper.

No começo dos anos 1980, Teresa, com o apoio da comunidade, se elegeu ao Legislativo Paulistano. “Como vereadora, pedi ao prefeito da época, Mário Covas, que desse o nome de 21 de Junho ao pronto socorro que nós estávamos reivindicando”.

Teresa Lajolo recordou que a “Pancadaria da Freguesia do Ó” foi noticiada no The New York Times, um dos mais famosos jornais dos Estados Unidos e do mundo. Ela lembrou que uma CPI foi aberta para investigar o que houve, até pelo fato de as pessoas que reprimiram os trabalhadores estarem a paisana e não com roupa de militar. “Era um grupo formado para reprimir os movimentos sociais sem expor a Polícia Militar”.

COMO SERÁ O ATO DESTE ANO?

Todos os participantes do programa

O pai de Serginho Silva esteve na organização da caminhada de 21 de junho de 1980 e viu toda a pancadaria acontecer. Passados 45 anos, Serginho está no grupo do Fórum de Políticas Públicas da Região Noroeste que está organizando o ato do próximo sábado, dia 21. “Temos de fazer a memória das conquistas e daquilo que ainda tentamos conquistar, neste período de luta por democracia. Portanto, nunca foi tão necessário lembrar da ‘Pancadaria’”.

Serginho detalhou que o evento terá início às 10h, com concentração na antiga Administração Regional da Freguesia do Ó, que fica em frente à Rua Léo Ribeiro de Moraes com a Rua Balsa. Depois, os participantes caminharão até a UPA 21 de Junho.

“Vamos fazer paradas no meio do caminho para reivindicar melhorias na educação e no meio ambiente, também por moradia e mobilidade urbana, grito contra grandes violências que a gente tem visto, contra terceirizações, e por mais saúde e trabalho. Estas ainda são lutas aqui de toda a região Noroeste. Queremos ao final deste trajeto entregar um manifesto ao secretário municipal de Saúde com as pautas em relação à saúde. Já fizemos um ofício solicitando a presença dele ou de algum representante”, detalhou Serginho, lembrando que a participação no ato é aberta a todos os interessados.

ASSISTA A LIVE DO COMUNIDADE EM FOCO DE 18 DE JUNHO

VEJA FOTOS DO ATO DE 21 DE JUNHO DE 2025