Criança, adolescente ou menor?

por Simone Preciozo

Documentário Operação Camanducaia sobre operação militar ocorrida durante a ditadura em Camanducaia é premiado em festival internacional no Canadá — Foto: Arquivo Pessoal/Solange Fernandes

Em treze de julho de dois mil e vinte e cinco, o Brasil comemora os trinta e cinco anos da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Depois de muitas idas e vindas da História, a Constituição de 1988 consolidou a criança e o adolescente como sujeitos de direitos.

A reflexão que podemos fazer é “como podemos melhorar e aumentar o alcance da Lei 8.069”? Nenhum ajuste proposto à Lei pode ser pretexto para uma tentativa de invalidação ou extinção.

O texto legal deixa, à época de sua escrita, uma margem para aperfeiçoamento sob alguns aspectos. Um que me chama a atenção é a ausência, dentre os requisitos para a seleção dos conselheiros tutelares, de que os mesmos respeitem o Estado laico. Temos assistido a eleições de conselheiros dentre representantes de vertentes religiosas. A questão é: em que medida ser eleito em nome de uma organização religiosa não se imporá como uma carta de princípios na atuação do conselheiro? O Estatuto também trata do sujeito de direitos como se ele fosse igual em todos os lugares e sem considerar raça e gênero. Hoje, teríamos que aprofundar e melhorar o texto no sentido de uma garantia cada vez mais plena à equidade para todas as crianças e todos os adolescentes.

A educação e o Estatuto da Criança e do Adolescente

Outra questão importante sobre o Estatuto é em que medida os professores e demais profissionais de educação conhecem a lei, para além da necessidade de chamar as famílias à responsabilidade em caso de ausência às aulas, ou quando um adolescente “dá trabalho” na escola.

Mais do que uma Lei preocupada com direitos básicos, o Estatuto é o primeiro marco legal que coloca em condições de igualdade as crianças e os adolescentes, tenham estas e estes família que por eles responda ou não. Todas as crianças e todos os adolescentes são sujeitos de direitos. Os mesmos.

Para compreender o contexto histórico da criação do Estatuto, é preciso recordar que, dois anos após a promulgação da Constituição de 1988, o mesmo foi criado com o objetivo de aprofundar o Artigo 227 da CF: “ É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Não se pode esquecer o momento que a sociedade brasileira vivia. Após vinte e um anos de uma ditadura sangrenta, a redemocratização foi marcada pela promulgação de uma nova Carta Magna, para consolidar a democracia no país. Ainda bem. Quantas vezes, assistimos a ataques pelo viés de manobras que buscam se sobrepor à Constituição Federal? Se já é difícil manter a frágil democracia em nosso país nos dias atuais, imagine se não tivéssemos passado por essa transformação do texto legal para adequar à nova realidade pós-ditadura.

Até o final da ditadura empresarial-militar, a legislação que se ocupou das crianças e dos adolescentes era completamente descontextualizada das ciências do desenvolvimento, dos direitos humanos e do princípio de equidade. Uma criança com vulnerabilidades nos vínculos familiares era vista de maneira desigual, preconceituosa, desumanizada. Daí o fato de serem chamadas de “menores”. Porque o único critério identitário nesse caso dizia respeito à maioridade, fase em que poderiam ingressar ao sistema prisional a partir da modificação de sua condição jurídica. O ECA atende a um rigor semântico que nos obriga a abandonar o termo “menor” e os conceitos e preconceitos que ele traz.

Quem é o “menor”?

Rovena Rosa/Agência Brasil

Em um contexto de classe média alta, por exemplo, jamais se vê um pai dizer “vou buscar meu filho e outros menores na festa”. Mas sobre os filhos vulneráveis de um outro alguém muitas vezes é esse o substantivo adotado para definir. Menor é sempre “o outro”, o filho do outro, assim como em tantos grupos identitários não-hegemônicos.

[…] “Assim, as crianças e adolescentes não eram reconhecidos como indivíduos portadores de direitos especiais, sendo que o Estado tinha um olhar de tutela sobre eles, e não de amparo integral. Com isso, a abordagem para lidar com questões da infância e adolescência era baseada em aspectos de correção, repressão e assistencialismo, sem foco na garantia de direitos fundamentais. A busca pelo bem-estar das crianças e adolescentes sem a tutela da família era centrada em práticas punitivistas, em que eles eram vistos como “menores” e que necessitavam do controle para a manutenção da ordem e dos “bons costumes”. [1](Politize, 2005)

A Constituição Federal de 1988 tem sofrido diversos ataques pelas correntes ideológicas da extrema-direita em nosso país. E eu arrisco dizer que o começo desse processo se deu justamente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Porque funciona assim na sociedade. São atingidos primeiro os mais vulneráveis. Neste caso, crianças e adolescentes.

Há quanto tempo, por exemplo, em programas de televisão focados na ação policial se observa, novamente, o uso do termo “menor” em editoriais e noticiários? Sem perceber, a população vem incorporando novamente esse conceito, até que se leve à modificação da Lei. Para atender a uma lógica perversa encabeçada por políticos mal-intencionados. Uma busca rápida pela internet usando a palavra “menor” vai mostrar o quanto essa aberração jurídica tem feito parte do seu cotidiano e talvez você nem tenha se dado conta.

Referências:

BRASIL, 1990. Senado Federal. Estatuto da Criança e do Adolescente.

POLITIZE! Instituto Matos Filho. [1] https://www.politize.com.br/equidade/conselho-tutelar-o-que-e/ – acesso em 13 de julho de 2025.


[1] https://www.politize.com.br/equidade/conselho-tutelar-o-que-e/