Criado para ser forte

Por Simone Preciozo

“Os que tiveram pai e mãe foram criados para serem fortes, criados para superar qualquer dificuldade e tal. É, qualquer demonstração de fraqueza, seja física ou até espiritual mesmo, você vai pro final da fila, mano. Então, você vai ver muito cara esconder isso aí como se fosse o pior pecado da vida dele. Se alguém descobrir que ele tem medo de alguma coisa.”Pedro Paulo Soares Pereira (Mano Brown)

Em um dos videocasts mais acessados no momento (maio de 2025), Mano Brown conversou com o ator, comediante e apresentador Paulo Vieira. Os dois homens negros dividiram com o público os efeitos da interiorização do racismo, inclusive nos que “deram certo”. Paulo Vieira, em um dado momento, refletiu que um homem negro (falando de si) deve sempre levantar e seguir em frente, afirmação com a qual o seu interlocutor concordou. Algo que remeteu ao não direito de cansar, parar, desistir. Como se alguma coisa sempre estivesse prestes a acontecer e que o levaria a perder tudo o que conquistou.

PROGRAMAS DE BOLSAS E OS EFEITOS DO RACISMO

Quando assisti a esse videocast, não pude deixar de relacionar a temática à notícia do início do mês de maio, de uma adolescente que teria chegado ao extremo de tentar contra a própria vida no banheiro do Colégio Mackenzie em São Paulo. Está hospitalizada. Também me remeteu à triste notícia do dia doze de agosto de dois mil e vinte e quatro. Outro jovem buscou se livrar do sofrimento psíquico imposto por uma participação no Programa ISMART que o levava a frequentar o Colégio Bandeirantes como bolsista. Da pior forma, abreviando a própria vida.

Os noticiários não trouxeram a informação se para receber a bolsa de estudos os estudantes deveriam estudar na sua escola de origem e na escola particular de onde se originou o ato de filantropia, ao mesmo tempo. No caso, duas escolas diferentes em turnos diferentes, no mesmo ano de escolaridade. Uma busca rápida mostrou que isso pode ter acontecido:

Fonte: https://www.ismart.org.br/processo-seletivo/

Fonte: https://www.ismart.org.br/processo-seletivo/

Gostaria de convidar você a uma reflexão: enquanto no contraturno os adolescentes e jovens que estudam nas mesmas escolas particulares sem a bolsa do referido programa dormem, jogam videogame, fazem judô, assistem a séries, namoram, frequentam academia, aulas de inglês, os beneficiários desta e de outras bolsas de estudo, quase sempre de origem afrobrasileira e sempre de baixa renda, devem estudar o dia todo. Essa é a “recompensa” por terem nascido inteligentes.

De saída, a inclusão dessas e desses jovens na escola particular já está fundada em uma desigualdade que é conhecida pelos colegas. Como eles haveriam de se sentir pertencentes?

Pode-se imaginar o sacrifício diário de pais e mães de adolescentes e jovens para manterem suas/seus filhos com um kit de sobrevivência mínimo a esses espaços: tênis de marca, smartfone, dinheiro para a cantina e outros detalhes da vida escolar que fogem ao crivo de análise sociológica mais ampla, mas que rendem carnês e privações à família. O estudante não permite a si mesmo fraqueza ou medo. A parte que lhe cabe no projeto é ser bom aluno nas duas escolas, tirar boas notas (senão perde a bolsa) e suportar toda sorte de humilhações que porventura venha a experimentar.

As notícias em questão apresentaram à sociedade equipes de trabalho escolar, nos dois casos, que desconhecem o sofrimento psíquico a que boa parte dos alunos bolsistas está submetida. E se conhecem, considerando-se o discurso e as evidências, parece que também não agem. Como se isso não lhes dissesse respeito. Fica implícita a ideia de “O que mais eles querem? Já demos a bolsa”.  Isso chegou a ser verbalizado em um dos casos.

Nas duas ocorrências, os adolescentes foram vítimas de racismo e homofobia, no mínimo. Crimes, não é mesmo? O que você acha que poderá acontecer com os autores dos ataques? Alguma hipótese?

É claro que queremos o melhor para os nossos jovens e com certeza o esforço das famílias e dos estudantes participantes dos programas deveria ser valorizado. Mas, fica a pergunta: estariam essas/es adolescentes e jovens pagando um preço muito alto pelo mérito a alcançar? Quanto de seu desenvolvimento cognitivo, físico e psíquico poderiam estar afetado com uma jornada de estudos puramente acadêmica dobrada?[1] Imagino que haja pesquisas a esse respeito em curso.


[1] P.S: essa jornada dupla nada tem a ver com educação em tempo integral, que eu defendo. É mais do mesmo, duas vezes por dia.