Com música, poesia e reflexões, Cantareira FM celebra 30 anos de resistência

Como contar as três décadas de história de um projeto de comunicação popular e alternativa criado e cultivado nos morros e vielas da periferia? Um dos caminhos escolhidos foi ajuntar em um mesmo espaço de exposição os primeiros gravadores de áudio, fitas-cassetes, máquinas fotográficas, discos, toca-discos, impressos, aparelhos de telefone e de fax, laptop, camisetas e estudos acadêmicos feitos sobre a rádio comunitária Cantareira.

A primeira transmissão foi ao ar às 18h56 do dia 8 de setembro de 1995, em FM 102,5, nos estúdios improvisados da Comunidade Nossa Senhora das Dores, no Jardim Vista Alegre, na zona Noroeste de São Paulo. A regulamentação da rádio, porém, viria somente 15 anos depois, passando a operar em FM 87,5 em 18 de julho de 2010, ocasião em que uma festa marcou a volta ao ar da rádio do povo.

A verdadeira história da rádio, porém, é contada pelas pessoas que a fazem – comunicadores, apoiadores e ouvintes – e foi com elas que a comunitária Cantareira FM celebrou seus 30 anos de resistência na tarde do sábado, 20, na sede da Associação Cantareira, na Vila Terezinha, no mesmo salão em que 15 anos atrás se comemorava a regulamentação da rádio.

Quem chegava à sede da Associação Cantareira se deparava com a referida exposição de objetos na sala em frente ao estúdio e já podia sentir o pulsar das pessoas no salão de eventos, no andar de cima, em que aconteceram as apresentações da festa: Samba do Congo, Cantada de Mulheres e Carimbó, (com Laura Oliveira, a Negra Flor, e Tiago Tapajós), em momentos mediados pelos comunicadores Anderson Braz, Simone Preciozo e Juçara Terezinha, também com as participações de Adão Alves, Gilberto Cruz, Edu Pretel, Elisângela Silva, Paulo Jofre, Antônio Carlos, Edvaldo e Anilson Brito.

FALAR COM O POVO

Na abertura do evento, Padre Cilto José Rosembach e José Eduardo de Souza, fundadores da rádio com Claudio Trudelli (já falecido), recordam os primeiros anos deste projeto de comunicação popular e explicaram que a emissora foi pensada como a maneira mais prática para falar com o povo, ouvir suas demandas, despertá-lo à consciência sobre os problemas sociais e valorizar a cultura local.

“Naquele começo dos anos 90, havia uma ‘febre’ no Brasil de rádios comunitárias, rádios piratas, e vimos que seria um modo bom de falar com o povo. Começamos a conversar com as lideranças, juntamos um dinheirinho emprestado daqui e dali, até que chegamos ao nível de arrumar um estúdio, que no começo era de madeirite lá na Comunidade Nossa Senhora das Dores. Tínhamos dois microfones, uma pick-up, um toca-discos e só”, recordou Cilto, destacando que rapidamente os moradores do bairro apoiaram a iniciativa.  

“Quem ia na rádio perguntava: ‘Escuta, mas isso pega no aparelho de rádio mesmo?’. Não acreditavam que o povão podia falar no rádio, no Jardim Vista Alegre. E até pensavam ‘esses caras vão sair com uma ‘Brasília véia’, uma corneta chiando, aquelas de vendedor de ovo, e falar que é a rádio’, mas viam que chegando em casa pegava no aparelho, e assim foi crescendo”, lembrou Cilto.

José Eduardo não escondeu a emoção ao ver o salão lotado para a festa dos 30 anos. Ele recordou que a partir da entrada no ar da rádio, “a gente começou a descobrir o que a periferia produz de cultura, ver quanta coisa a gente faz no nosso pedaço. Quando nós começamos, muitas pessoas apareciam na rádio levando seu disco de vinil – um LP ou compacto pequenininho – e pediam para tocar na rádio, já que outras emissoras não tocavam porque eram de pessoas desconhecidas do grande público. Mas nós tocávamos, colocávamos no ar”, recordou José Eduardo, enfatizando que a Cantareira passou a dar voz a um povo que historicamente estava sendo silenciado.

Após falarem no salão de eventos, Cilto e José Eduardo, junto com Formigão (Orlando Garcia), um dos primeiros comunicadores da rádio, recordaram no estúdio os primeiros anos da emissora e a importância da comunicação popular.

VALORIZAÇÃO DA CULTURA LOCAL E POPULAR

Os artistas que se apresentaram no evento comemorativo também deram uma passadinha nos estúdios para falar ao vivo com os comunicadores Alberto dos Anjos (Beto Souza), Daniel Gomes e Nathércia de Sousa.

“É fundamental ter uma rádio comunitária aqui na região. Ela ressoa, reverbera e multiplica exponencialmente a possiblidade de alcance do artista popular. A Cantareira é um lugar onde a gente sempre foi muito bem acolhido. Para o ‘artista da quebrada’, as rádios comunitárias são fundamentais”, afirmou Fernando Ripol, que foi aos estúdios com outros integrantes do Samba do Congo.

Laura Oliveira-Negra Flor e Tiago Tapajós também foram entrevistados. Eles destacaram as origens do Carimbó, um tradição do estado do Pará, e ressaltaram o aspecto inclusivo desta expressão cultural. Na apresentação que fizeram na festa, uma moça cadeirante, Vitória, filha da educadora Joana D’Arc, fez parte da dança, um gesto que emocionou a todos.

“Toda dança não é apenas espetáculo pra ser visto, admirado. Ela precisa ser inclusiva. Por isso que coloquei a saia na Vitória. A dança tem de trazer as pessoas, e fui para o meio do pessoal, chamei pra dançar”, comentou Negra Flor, que também dança o Carimbó em escolas públicas, valendo-se desta arte como ferramenta de inclusão.

Música, poesia e reflexão sobre o cotidiano das mulheres foi o que se viu na apresentação da Cantada de Mulheres, com o tema “Resistência: Substantivo Feminino”, dando ressalte à luta contra a violência de gênero. A iniciativa tem o apoio da deputada federal Juliana Cardoso (PT), que prestigiou a festa de 30 anos da rádio.

“Pela comunicação e a informação a gente consegue ‘startar’ consciência, esclarecer as pessoas sobre a verdade dos fatos, ainda mais neste período de fake news. A rádio Cantareira é muito importante para a luta social aqui na região e é referência para outros locais. Eu vim da zona Leste, de Sapopemba, e me lembro o quanto se falava da Cantareira para se pensar em como fazer uma boa rádio comunitária”, recordou a deputada federal.

Na entrevista, Juliana Cardoso teve a companhia de Rodrigo Bonciani, professor de história da Unifesp Guarulhos que tem feito um trabalho de história e memória sobre o Distrito da Brasilândia, sendo a Associação Cantareira um ponto de memória.

“Estamos muito felizes em trazer a história dessas associações, preservá-las tanto por meio de uma plataforma digital que estamos desenvolvendo, o favelas.br, quanto o acervo físico dessas associações. Hoje, além dos problemas das fake news, temos de combater a fake history, a história falsa contada apenas por gente ‘lá de cima’, e assim a história popular e de luta não entra na História”, observou Bonciani.

MEMÓRIA E ESPERANÇA

A parte final da festa foi marcada por muita emoção. A senhora Jacira declamou um poema em homenagem à aniversariante emissora: “Rádio Comunitária Cantareira, a voz do povo ecoa nas ruas e no coração, em cada programa, uma história se cria, nas ondas do rádio o bairro se encontra”.

Também houve uma apresentação audiovisual dedicada “a todos e todas que um dia acreditaram em um ideal e fizeram história na família Cantareira”, fazendo memória dos comunicadores, ouvintes e colaboradores da rádio já falecidos, ao som da clássica “Canção da América”, de Milton Nascimento.

E foi como amigos de ontem guardados “no lado esquerdo do peito” e com os de hoje unidos em gratidão pelos 30 anos de história que o “Parabéns a você” foi cantado em coro, com os comunicadores da Cantareira FM e algumas crianças em frente ao bolo comemorativo.

Ao final, Juçara Terezinha agradeceu a presença de todos na festa, com menção especial às educadoras do Mova que ajudaram nos trabalhos do dia.

Reportagem: Daniel Gomes (jornalista e comunicador na rádio Cantareira)

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