Casal de psicanalistas alerta sobre quando o ‘amor’ vira relacionamento tóxico

“Você é um lixo”; “Sem mim, você não é nada”; “Só eu te aturo, só eu te aguento”; “Eu te traio porque você não se cuida”. Diariamente, milhares de pessoas, em especial as mulheres, escutam frases assim daqueles que um dia ouviram juras de amor. Quando a vida do casal chega a tal ponto, não raro com uma rotina de agressão física por parte de um dos parceiros, está estabelecido um relacionamento abusivo, também chamado de relacionamento tóxico.
“Todas as minhas vontades são feitas, mas as da minha companheira não. Ela sempre vai aonde eu quero, come o que eu quero, se veste como eu quero, tem os amigos que eu permito. No começo, isso até pode parecer bonitinho, pois aparenta cuidado, mas depois vira excesso de controle. O relacionamento tóxico vem pela forma financeira, emocional, até o momento em que a mulher – ou o homem – fica isolada, sem amigo, sem família, sem trabalho e não sabe como sair dessa situação. Em resumo, tem a sua vida 100% controlada”.
A explicação é do psicanalista Francisco Nicastro, o Nic, especializado em gestão de conflitos e no fortalecimento de vínculos amorosos. Na edição de 21 de junho do programa “Revista da Semana” – apresentado por Beto Souza na rádio comunitária Cantareira FM – ele falou sobre o tema na companhia da esposa, Sophie Dollinger, especialista em psicopedagogia e psicanalista especializada em relacionamentos.
Sophie alertou que nenhuma manifestação de ciúme pode ser considerada saudável – “Ciúme não é amor, é um comportamento abusivo” – e ponderou que embora todo relacionamento seja difícil, quando somente uma das partes cede às vontades do outro tem-se o relacionamento tóxico, marcado por um controle excessivo das ações.
“Os passos seguintes são te afastar dos amigos, te afastar da família, para isolar mesmo a pessoa e ela não ter uma rede de apoio se quiser sair do relacionamento”, completou Nic.
Conversas francas desde o começo

O casal de psicanalistas (Instagram @sophieenic.casal) – diz que a primeira atitude para evitar relacionamentos tóxicos é que as pessoas que desejam viver juntas tenham uma conversa franca sobre o que para elas é irrenunciável, ou seja, daquilo que fazem hoje o que não abrirão mão após casados.
“Uma vez que está acordado, não se deve jogar na cara depois. O grande erro antes de casar é o famoso ‘eu não gosto, mas vou deixar, lá na frente a gente vê’. Porém, ‘lá na frente’ as pessoas não resolvem, elas brigam”, ressaltou Nic.
Sophie disse ser importante que ao iniciar um relacionamento, o casal projete em qual lugar/situação deseja estar no futuro: “Se você caminhar para cá e seu marido pra lá, ‘vai dar ruim’. Vocês tem de caminhar juntos, o que envolve as questões de religião, valores, ética, moral. Por isso, é tão importante ter essas conversas difíceis no começo do relacionamento, conversar sobre aquilo de que não se abrirá mão”.
Ela também alertou que pessoas que se sentem muito carentes estão mais suscetíveis a entrar em um relacionamento sem o devido discernimento, e mais adiante poderão se surpreender com a personalidade do parceiro.
A difícil tarefa de sair deste relacionamento

Nic ressaltou que sair de um relacionamento tóxico não é um processo simples: “A pessoa está tão carente, tão destruída emocionalmente, que ela não tem força pra sair. O agressor a deixa em um frangalho emocional a ponto de a pessoa por vezes falar ‘ele está gritando comigo porque a culpa é minha’ ou ‘eu não fiz a comida que ele queria’, ‘ele tem razão de me bater’, ‘eu não sou boa o suficiente’, ou seja, ele destrói o emocional da pessoa, e ela não consegue fazer nada”.
De acordo com Sophie, a recorrência desse tipo de agressão acaba por minar as forças da pessoa: “Ela se destrói completamente. E a sociedade enxerga a pessoa que está neste relacionamento como fraca – ‘você não consegue sair deste relacionamento porque você é fraca’. E a gente ouve muito também coisas do tipo ‘você gosta de apanhar, se não já tinha saído’. Nós vivemos em uma sociedade que julga muito, especialmente a mulher”.
A psicanalista lembrou que muitas mulheres temem se separar de um companheiro que a agrida por temer a perda da guarda dos filhos, o que, na realidade, é um temor infundado.
Nic também enfatizou que é um erro manter um relacionamento tóxico só por causa dos filhos: “A criança percebe o desamor, isso fica no inconsciente dela e muitas vezes irá se tornar um adulto que não acredita em uma relação”.
Como ajudar alguém nessa situação?
O psicanalista afirmou que a pessoa que esteja em um relacionamento tóxico precisará de uma forte rede de apoio quando expressar o desejo de se separar: “Nunca aconselhamos que a mulher vá sozinha conversar com o homem neste caso. Ela deve estar com o advogado, com parentes, pois nunca se sabe a reação do outro e a pessoa pode tentar uma agressão física”.
Sophie também recomendou que os parentes ou amigas da mulher que sofra com um relacionamento tóxica se mostrem disponíveis a ajudá-la, mas que não deem conselhos vagos: “Ofereça ajuda prática como: ‘se você quiser dormir na minha casa, você pode!’; ‘se você quiser que eu te leve em tal lugar, eu te levo’. Portanto, ofereça ajuda prática em vez de dizer o que a pessoa tem de fazer”.
“Vai chegar uma hora que a pessoa dirá: ‘pra mim já deu’. É a pessoa que tem de decidir”, reforçou Nic.
Tentar salvar o casamento vale a pena?

Nic explicou que a primeira ação do psicanalista com uma mulher que reporte estar sofrendo um relacionamento tóxico é a de reconstruí-la emocionalmente.
“Feito isso, estimulamos que ela olhe para o casamento, e perguntamos: ‘Vale a pena tentar trazer ele pra cá?’ Pode ser que sim, pode ser que não. Porém, quando há a religião envolvida, com líderes religiosos querendo que a todo custo aquele casamento continue, aí fica muito complicado. Muitas pessoas não abrem mão, acham que vão estar traindo Deus, que vão pecar”, contou o psicanalista.
Nic lembrou que quando a mulher sai de um relacionamento tóxico é muito difícil que ingresse em outro, mesmo que conheça uma boa pessoa, pois guarda memórias de que no antigo relacionamento tóxico tudo foi maravilhoso no início.
Como a psicanálise trata um relacionamento tóxico
Nic destacou que tanto o agressor quanto o agredido precisam de ajuda em um relacionamento tóxico. “À exceção de um psicopata, que não tem sentimento algum, ninguém se torna agressor porque quer. O que existe é um padrão que foi criado no inconsciente dele”, comentou. “O agressor precisa sim de ajuda, mas a gente não pode jamais ‘passar a mão’ em sua cabeça. Não dá pra falar ‘coitado, ele teve um trauma lá atrás e por isso espanca a esposa’”.
Sophie lembrou que muitas vezes a mulher que vive um relacionamento abusivo tenta justificar os comportamentos do esposo falando que ele teve uma infância difícil, ou que passa por um momento difícil no emprego, ou “ele não é assim sempre, ele não me bate sempre, só quando ele está nervoso”, ou coisa do tipo “ele gritou comigo, mas no dia seguinte me trouxe flores”. Estas atitudes, segundo ela, em nada colaboram para o enfrentamento do problema.
Questionada sobre como a psicanálise pode ajudar a pessoa que está em um relacionamento tóxico, Sophie lembrou que essa especialidade de Saúde traz à tona os eventos que estão no inconsciente para que a pessoa consiga esclarecer o que aconteceu e porque toma determinadas ações: “Nós não conseguimos retirar, apagar ou esquecer aquela dor, mas ressignificá-la”.
Nic lembrou que a psicanálise busca a origem do problema, ou seja, tenta entender o que o criou, o que gera uma determinada dor, razão pela qual muitas vezes a psicanálise é mais demorada do que outros tratamentos.
Por fim, o psicanalista listou três pensamentos e atitudes que são fundamentais para quem deseja se ver livre de um relacionamento tóxico: “A primeira coisa é: pare de se culpar; a segunda, tenha certeza de que é possível estar em um relacionamento saudável e que você merece e pode ser amada; e, em terceiro lugar, procure criar uma rede de apoio, pode ser uma amiga, a família, pois quando você decidir que é o momento de sair, precisará dessa rede de apoio”.
Já Sophie destacou que as pessoas não devem achar que estar em um relacionamento tóxico seja normal: “Vamos parar de normalizar essa dor e ter a certeza de que todos nós merecemos ser felizes”.
O casal de psicanalistas

Nas redes sociais – @sophieenic.casal – Nic e Sophie postam conteúdos e vídeos com dicas sobre relacionamentos. Eles também apresentam semanalmente o programa “Relacionamento sem Filtro”, pela rádio Vibe Mundial, às segundas-feiras, às 19h.
E uma boa métrica para se saber se o relacionamento em que se está é tóxico ou não, talvez seja a simples resposta a esta pergunta deixada por Nic ao final da entrevista: “Você recomendaria seu relacionamento para a sua filha/filho? Se a resposta for não, algo precisa ser ajustado”.
Abaixo, assista a íntegra da live do “Revista da Semana” de 21 de junho. O programa vai ao ar aos sábados, das 10h às 12h, com reprise aos domingos, das 14h às 16h.