Autonomia para avaliar a educação

por Simone Preciozo
“Não aceitamos a avaliação de desempenho nos termos que a SEDUC quer impor, não aceitamos que estudantes avaliem professores e que a avaliação de desempenho seja usada como critério para transferências, pagamentos, demissões.” Assim o jornal virtual “Informa Urgente”, do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo – APEOESP, se manifestou na edição de 27/06/25.
Avaliação de serviços
Prestação de serviços precisa ser avaliada pelos usuários. Acredito que, na atualidade, não há como se opor a essa premissa. Sempre que é atendido, seja por uma empresa privada, seja pelo serviço público, ao final desse atendimento (às vezes no seu whatsapp ou e-mail), você é convidado a dar uma pontuação para o atendente, o que muitas vezes leva a acreditar que a excelência do serviço não fica garantida. O trabalhador pode ser bom, mas o serviço nem sempre o é na totalidade. Fico com essa questão paradoxal sempre que sou convidada a avaliar os atendimentos. O contrário também acontece. Às vezes um mau atendimento acaba se sobrepondo à qualidade de um produto ou prestação de serviço no geral.
Essa reflexão me leva a pensar na proposta atual de avaliação de desempenho da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.
Avaliação como perseguição

Sabendo-se que o estado, hoje, é liderado por um representante da extrema-direita e que esse viés ideológico persegue os professores, como sendo doutrinadores “esquerdistas” na ótica de quem se identifica com o movimento “escola sem partido”[1], isso pode nos levar leva a pensar que os critérios para a avaliação dos educadores serão focados em tais princípios.
A cena que me vem à cabeça é do filme 1984[2], em que as pessoas da sociedade distópica são vigiadas 24 horas por dia e não podem expressar o que pensam. O filme é atual, mesmo após 40 anos. E o cenário da educação, pelo menos no Brasil, beira à distopia.
No início do governo Michel Temer, após Dilma Rousseff sofrer o golpe hoje incontestável, eram comuns os convites no Twitter ou em outras redes para que professores fossem denunciados, caso falassem em política. Ali começou. De lá para cá, a educação brasileira tem sido transformada em um meio de doutrinação (isso mesmo) só que de princípios afinados com o conservadorismo neoliberal e neopentecostal. Educação que parece até ser apolítica. Como se fosse possível.
O currículo sempre foi e sempre será terreno de disputa. Se quiser conhecer a radiografia de uma sociedade, há que se olhar como se trata educação e seu conteúdo. Não há dúvidas que a intenção na avaliação de desempenho atualmente no Estado de São Paulo é um meio de intimidar e punir professores da rede. Um breve contato com o site já dá a impressão de que os “xerifes” que conduzem a política no Estado estão prestando contas à população por serviços mal prestados, dando a impressão de que os responsáveis absolutos pelo fracasso escolar são… os professores.
Avaliação que promove o caos
Assim como no passado aos alunos era atribuído o fracasso, neste tempo distópico, o mesmo parece ter sido deslocado aos professores. Mas não se iludam com os defensores de um possível controle de qualidade porque a intenção não é boa. Essa mudança tem objetivo: desmontar a educação pública e entregá-la à privatização. Em nome desse objetivo, os mandantes da educação no estado passam por cima da ciência e tudo o que, no último século, se descobriu sobre a educação, o desenvolvimento humano e a aprendizagem. É muito complicado você tratar a escola como empresa. As instituições de ensino particulares também não podem funcionar como empresas. Pelo menos não completamente.
O equívoco tem muitas camadas. Talvez a maior preocupação seja a avaliação dos professores feita pelos estudantes. Qual seria o nível de maturidade que uma criança, adolescente ou jovem deveria ter para passar por uma inversão como essa?
Precisamos compreender o papel que um educador exerce na vida do estudante. No fim, quem vai perder muito com essa situação vai ser o aluno.
O juízo moral na criança

Na obra “O juízo moral na criança”, Jean Piaget aferiu, em pesquisa ainda atual, que o ser humano passa por três fases em relação ao desenvolvimento do juízo moral[3].
A primeira seria a anomia, em que as crianças muito pequenas, antes do pensamento reversível e operatório, não conhecem as regras da vida em sociedade e têm a afetividade e a força do hábito como motivação para agirem socialmente. A fase seguinte, a heteronomia é caracterizada pela necessidade de uma regulação externa, de uma autoridade. Para Piaget, a fonte da moralidade infantil é dupla. De um lado, estão as normas dos adultos, que criança acaba cumprindo por respeito à autoridade. Com o tempo, essas normas são compreendidas até que as crianças comecem a agir utilizando-se de regras a fim de resolver seus próprios conflitos, com os iguais, por meio da interação. A fase seguinte é a conquista da autonomia, que se inicia por volta dos quatorze anos e em alguns casos, não chega a ser completamente desenvolvida. Sabemos que há pessoas adultas com dificuldade em exercer tal juízo em todos os aspectos da vida.
Pode-se dizer que a maior parte da vida de um estudante é marcada pela fase da heteronomia e isso faz parte do seu desenvolvimento. A autonomia é uma conquista a partir da resolução dos conflitos com os iguais na etapa anterior.

A avaliação feita por estudantes, do adulto, que tem o papel de exercer autoridade e estabelecer normas, deverá gerar prejuízo aos alunos. Quais serão as consequências? Talvez o futuro nos mostre. Da pior forma.
Diante de tudo o que a ciência ofereceu no último século, só podemos acreditar que há uma desonestidade intelectual intencional nas autoridades que promovem uma situação que, se de um lado poderá provocar uma desregulação no desenvolvimento moral de crianças e adolescentes, de outro lado se constitui em violência para os professores e vai interferir de maneira danosa em seu trabalho. Professoras e professores vão adoecer cada vez mais. Até deixarem de existir.
[1] Escola sem partido -artigo> https://cienciahoje.org.br/artigo/escola-sem-partido-origens-e-ideologias/
[2] 1984. Prime Vídeo. https://www.primevideo.com/-/pt/detail/1984/0NQ2ETICIFHFIPRGW4ZDGNBYEK
[3] http://www.gestaouniversitaria.com.br/artigos/o-juizo-moral-da-crianca-na-obra-de-jean-piaget