As lições de uma história brasileira

Por Simone Preciozo
Cinema é uma arte e por isso melhora a vida. Em geral, depois de um filme, somos pessoas diferentes. Mesmo que a experiência não seja “a mais valorosa”. Há poucos meses, o cinema brasileiro elevou-se uma oitava acima, com todo o respeito pela produção de obras que precederam o lendário e emblemático “Ainda estou aqui”, produzido e dirigido por Walter Salles e estrelado por Fernanda Torres, Fernanda Montenegro e Selton Melo. Também não estamos desconsiderando as críticas feitas por uma parcela de articulistas progressistas, que, não se vendo representados, teceram suas opiniões. Compreendemos o valor democrático de tal crítica. Entretanto, é inegável que a obra teve o poder de dialogar com a vida brasileira, trazendo à tona um passado recente e doloroso.
Poderíamos discorrer a respeito de muitos pontos de vista sobre o valor que esse filme tem para a nossa História recente, mas peço licença para trazer cinco aspectos que podem ser considerados muito didáticos sob a ótica da educação em direitos humanos.

- Eunice Paiva, personagem principal do filme, esposa do deputado federal Rubens Paiva, lutou a vida toda pela elucidação do caso do desaparecimento de seu marido. Enquanto travou essa luta com o Estado pelo reconhecimento legal do assassinato de Rubens pelos agentes da ditadura militar, Eunice esteve à frente de outras pautas em direitos humanos. Foi reconhecidamente a responsável pelo não desaparecimento do povo Zoró. Atuou ativamente durante a Assembleia Nacional Constituinte pela demarcação das terras indígenas. Suas escolhas nos mostram a importância de não se ater e defender pauta única em movimentos progressistas. Importante lembrar que, lutar por justiça em favor de um grupo social não nos isenta de lutar por outros grupos. Trocando em miúdos, pode-se ver, curiosamente, pessoas cuja pauta é o direito de pessoas LGBTQIA+ ao casamento, não se incomodarem com racismo ou com as urgências climáticas. Quem luta por direitos humanos poderia lutar por todos os grupos e suas demandas. A advogada Eunice Paiva nos deixou essa lição importante.
- A história foi originalmente escrita por Marcelo Rubens Paiva, filho do casal Rubens e Eunice. Um homem PCD (pessoa com deficiência) desde os 20 anos de idade, que escreveu seu primeiro best-seller “Feliz Ano Velho” ainda jovem e que produziu com sua obra “Ainda estou aqui” uma transformação no país inteiro, além de mostrar ao mundo o que acontecia no período da ditadura empresarial-militar no Brasil. Marcelo é a prova de que as pessoas com deficiência são capazes como as outras, sem deficiência.
- O amor vivido pela família Paiva atravessou o tempo e hoje é lembrado pelos filhos do casal, com a devida reparação histórica que a sociedade lhes deve. Entretanto, chama a atenção o fato de que Walter Salles foi uma criança amiga dos filhos da família, que conviveu com o casal e foi afetado (com afeto) pela história de uma casa que frequentou. A educação comunitária é essa que fazemos também pelos filhos de outras pessoas e que deixa marcas. A escolha (digamos amorosa) de Salles passou provavelmente por uma necessidade de trazer a público uma história que precisava ser contada. Sejamos referência de amor e humanidade às crianças, dentro e fora de nossas casas.

- De todas as homenagens feitas a Fernanda Torres, a que chamou a atenção foi o boneco de Olinda perfeito com a sua representação. Seu agradecimento público nas redes sociais pode ser lido como a valorização do Carnaval como manifestação cultural brasileira, e o diálogo amoroso entre expressões diferentes, que não deixam de ser faces da mesma arte: a arte brasileira. Uma lição que mostra o valor que o Carnaval tem para contar a nossa história, seja passada ou recente. Muitas vezes, a resistência à repressão da ditadura aconteceu nos desfiles que eram apresentados para o mundo, e alguns brasileiros ainda têm dificuldade para reconhecer o valor político do Carnaval.
- Por último e não menos importante, temos a desconstrução de um estereótipo: o militante político como uma pessoa sem família, apartada da vida social. É certo que em alguns casos realmente isso aconteceu e filmes anteriores retrataram essa dura realidade: “Marighela”, “O que é isso, companheiro”, por exemplo. Mas, durante e após a ditadura empresarial-militar, existiu e existe a figura do militante pai ou mãe de família, que divide seu tempo entre o trabalho e a luta sindical e/ou partidária. Que volta de uma passeata, busca os filhos na escola e segue para casa com o objetivo de cuidar da vida e da alimentação de sua família. A história dos Paiva contribui para a revisão de estereótipos sobre a militância.