As crianças estão vendo

Por Simone Preciozo
Os meus, os seus, os nossos
A partir da Constituição Brasileira de 1988 e da consequente promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a sociedade passou a ser corresponsável pela garantia de direitos das crianças, inclusive perante suas famílias. O caput do Artigo 227 da Lei é muito claro no texto: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”[1]
Crianças submetidas a condutas irregulares de seus responsáveis têm, a partir dessa responsabilidade compartilhada, o direito a serem protegidas, mesmo daqueles a quem poderiam ter a garantia de sua integridade. Tanto que são da competência dos Conselhos Tutelares acolher denúncias de maus-tratos, negligências e abusos, mesmo os psicológicos, com o objetivo de assegurar à criança e ao adolescente uma vida digna.
Os últimos acontecimentos no nosso país nos colocam uma questão. É do conhecimento de boa parte da população brasileira a conduta demonstrada por um deputado federal, notadamente um dos mais bem votados no Estado de São Paulo (sic) que, na busca por inocentar a si, os seus irmãos e principalmente o seu pai, viajou para os Estados Unidos da América e de lá tem cometido muitos abusos à sua condição de representante do povo na casa legislativa e tem sido apontado como “traidor e conspirador da pátria”. Ligado aos partidos de extrema-direita do Brasil, o sujeito é apontado como conspirador.
Um fato que tem chamado a atenção é que, na vida compartilhada com as crianças de sua casa, é comum vermos que elas participam de momentos em que esse sujeito grava vídeos com provocações e atos de desrespeito a autoridades públicas do seu país de origem, de onde vem ou veio seu sustento até outro dia.
As crianças da casa de um brasileiro quase foragido devem ter a sua rotina muito modificada, sendo alienadas da vida comunitária, pois foram obrigadas a mudar-se e viver em um exílio voluntário por parte dos seus pais. Esse é o fato menos grave.
Grave é pensar que seu pai pode estar incutindo ideias autoritárias e antidemocráticas na sua formação moral. As crianças são expostas a agressividade verbal constante, ainda que diante das câmeras nenhum desses episódios pareçam estar ligados diretamente à vida familiar.
Outro aspecto a ser considerado é o de que aprendam que manipulação inverídica de fatos e dados levem a um objetivo. Ensinamos as crianças mais por exemplos do que por discursos ou resultados. Elas podem ser levadas a naturalizar um comportamento irregular. Também podem chegar à conclusão de que privilégios são mais valiosos do que valores éticos ou meritórios.

Século XX, nazismo e fascismo
O fascismo e o nazismo parecem ter revertido muitos dos valores humanos no século XX. Nos filmes, vemos crianças convivendo com holocausto no quintal de sua casa (O menino do pijama listrado), incentivadas a delatar parentes e vizinhos que fossem judeus ou que escondessem judeus (Jojo Rabbit). Para citar alguns exemplos que foram retratados pela sétima arte. Há alguns anos, víamos isso como algo muito distante da nossa realidade. Hoje, entretanto, nossas crianças estão submetidas a diversas inversões éticas, convivem com a naturalização de genocídio, e… na sutileza de uma rotina aparentemente privilegiada, pode-se encontrar um pai visivelmente transtornado, fazendo o papel de sequestrador de um país inteiro, exercendo um poder fora dos parâmetros aceitáveis, interagindo com crianças. Seus filhos.
Uma questão que se coloca: uma criança submetida a comportamentos insanos de seus pais é problema somente desses pais, uma vez que a violência não possa ser nomeada ou caracterizada? Outra dúvida é se esse adulto em desequilíbrio visível também poderia ter testemunhado comportamentos inadequados em sua infância (ilícitos talvez)? Talvez devêssemos começar a nos preocupar com isso.
[1] BRASIL 1988. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 – acesso em 02/08/25