Adolescências

por Simone Preciozo

Peço licença para dividir hoje com você uma visão que não nasceu porque há uma série que é sucesso mundial. É fruto da experiência.

Adolescência, fenômeno de audiência da NETFLIX, tem muitas camadas. Tanto que encontramos especialistas (ou nem tão especialistas) abordando-as de diversas maneiras, sob diversas óticas. Eu escolhi a camada para a qual talvez tenha contribuição. O sofrimento psíquico de adolescentes.

O melhor da série, para mim, está nos detalhes. Mais do que no próprio arco narrativo.

O começo talvez tenha me causado maior impacto. O investigador de polícia Bascombe, vivido pelo ator Ashley Walters, tem a missão de dar voz de prisão a um menino que estuda na escola de seu filho. Mas logo cedo, antes de exercer o mandado na casa de Jim (Owen Cooper), tem um diálogo com seu próprio filho que me causou frio na espinha. Um rapaz, com voz grossa, do outro lado da linha, está apresentando motivos para não ir à escola. Eu ouvi coisas assim por muito tempo na minha casa. Passei a acompanhar esse filho de Bascombe no segundo episódio e vi que, mesmo não sendo o protagonista da história, o assédio que sofria diariamente renderia um outro filme.

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Todos os dias, anonimamente, crianças, adolescentes e jovens passam por episódios de assédio. Não uso o termo “bullying” porque acredito, desde seu surgimento, que esse termo buscou generalizar uma série de crimes e atos que ferem os direitos humanos, criando um contexto asséptico e apolítico para essas ações. Racismo continua racismo, homofobia é homofobia, intolerância religiosa é intolerância religiosa, xenofobia é xenofobia, gordofobia é gordofobia, misoginia é misoginia.  E, no fundo, se buscarmos as razões do assédio, passam pelos pilares indestrutíveis da sociedade patriarcal. Por isso, a busca por eufemismo (o termo bullying) para atos criminosos de jovens de classe média, quase sempre brancos.

Crianças e adolescentes são seres em formação. Sou muito relutante a ideias que os colocam como autores autônomos de crimes. Isso pode abrir precedentes para a discussão de redução da maioridade penal, por exemplo.

Quando um adolescente erra, a aldeia toda errou, com base no provérbio africano. Em uma sociedade doente como mundialmente estamos enfrentando, como não esperar que se chegue ao crime?

O segundo episódio, na escola, também me trouxe desconforto. Inicialmente, parecia que era um exagero acontecerem tantos problemas em um único dia. Entretanto, lembrei-me da realidade que encontrei como diretora, que já esbarrava no amálgama entre mundo real e virtual: assédio na internet que se desdobrava na escola, agendamento de brigas de gangues que, quando eu sabia, tinha que cuidar na entrada dos alunos mais velhos, perfis falsos criados por desafetos de meninas para transformá-las em personagem caricata do sexo são alguns exemplos. Lá se vão treze anos desde aqueles dias. Imagino que hoje os problemas estejam muito mais intensos.

Problemas que parecem sem solução. Quem vai proteger nossas crianças? Qual a melhor solução?

Tenho ouvido especialistas dizerem que é preciso ter controle de todos os passos dos adolescentes na internet. Quem vai conseguir? Fraternalmente, eu pergunto.

Foto: Agência Brasil

No passado, os pais não tinham controle sobre as revistas com fotos eróticas que circulavam nos recreios, em passados mais remotos, os pais não podiam evitar que seus filhos ouvissem Beatles ou se vestissem e cantassem como Elvis Presley. O filme “O nome da rosa” mostra a transgressão dos jovens clérigos que, estando alfabetizados na Idade Média, tinham acesso ao que a maioria não tinha. Conteúdos proibidos pela Igreja. Sempre existirá um “gap” entre gerações e interesses.

A internet está parecendo mais assustadora do que as ruas que ensinavam os jovens a usar entorpecentes ou fazer sexo livremente? Quem diria…

Penso que seria uma grande hipocrisia um adulto como eu ou você dizer que nunca teve vontade de fazer algo proibido, fora do controle dos pais ou de quem cuidasse de nós, embora reconheça o grande perigo trazido pelas comunidades INCEL e REDPILL. Mas, por que nossos meninos estariam sendo cooptados por essas comunidades sombrias?

A experiência me mostrou e mostra a cada dia que não há solução individual para um problema que é de todos (a aldeia). Você pode investir muito em tratamentos e remédios e estes nunca vão substituir a humanidade das relações. Quanto nós temos nos interessado pelos problemas dos nossos filhos? Será que, mais importante do que proibir acesso à Deep Web (internet subterrânea) não seria abrir canais de escuta para as dores das crianças? Quanto isso nos tem importado?

É cruel tentar acompanhar o que acontece na web. E toda vez que o judiciário brasileiro ou de qualquer país busca um marco regulatório, esbarra com os donos do mundo, que também são donos das big techs.

Só nos resta cuidar afetiva e intelectualmente de nossas crianças, adolescentes e jovens. E falo isso pensando em toda uma rede de apoio. Incluindo-se políticas públicas e a presença de um Conselho Tutelar laico e forte em seus propósitos. Já passou da hora.