A educação é para todos?

por Simone Preciozo
Em tempos de redes sociais e superexposição de diversos formadores de opinião (algumas desnecessárias) vez ou outra surge um/a coach em defesa do mérito de cada um, de acordo com sua força de vontade. É comum.
Embora possamos tender a valorizar os esforços de estudantes, o que não chega a ser um problema, convido você a pensar sobre como temos educado nossas meninas, especialmente as negras. O que realmente tem dependido da sua própria vontade?
AS DESIGUALDADES QUE MARCAM A EDUCAÇÃO DE MENINAS NEGRAS

Fazendo um resgate à história recente, marcada pela pandemia de COVID-19, ocorrida a partir do início do ano 2020, é possível reconhecer o quanto essa condição aprofundou desigualdades históricas e expôs com ainda mais crueza os abismos existentes na educação brasileira. Provavelmente, o grupo mais afetado por essa crise silenciosa foi o de meninas negras.
Segundo o estudo “A educação de meninas negras em tempos de pandemia”[1], produzido pelo Geledés Instituto da Mulher Negra, a disparidade no acesso à educação entre meninas negras e brancas aumentou significativamente durante o período. A pesquisa, que ouviu 105 famílias da periferia e 149 profissionais da educação e organizações da sociedade civil, revela como a intersecção entre raça, gênero e classe social resultou em barreiras ainda mais difíceis de transpor. Dados da PNAD COVID-19, divulgados pelo IBGE em 2020, já alertavam para esse cenário: o número de estudantes negros e indígenas sem atividade escolar foi três vezes maior do que entre estudantes brancos.
Cinco anos após o fenômeno social estudado pelo Geledes, fica a necessidade de verificar a extensão do abismo provocado pela COVID-19.
Quando uma menina negra da periferia é excluída do processo educacional, mesmo que temporariamente, ela não perde apenas o acesso ao conteúdo escolar — perde oportunidades de futuro, redes de apoio, perspectivas de mobilidade social e, muitas vezes, até a confiança em si mesma. Ela “sai da roda” e não retorna.
Estudos apontam que quanto mais tempo longe da escola, maiores as chances de evasão definitiva. No caso das meninas negras, esse afastamento frequentemente está associado ao acúmulo de responsabilidades domésticas, à precariedade do acesso à internet, à necessidade de trabalhar para complementar a renda familiar ou até à gravidez precoce. Tudo isso reduz drasticamente suas possibilidades de acesso ao ensino superior, à inserção em melhores postos de trabalho e à participação em espaços de decisão e poder.
POR QUE COTAS RACIAIS?

A ação afirmativa promovida através do sistema de cotas é um instrumento potente para combater a reprodução da pobreza e do racismo estrutural. Sem educação de qualidade e com equidade, meninas negras continuam sendo empurradas para as margens: ocupando empregos informais, subvalorizados e com menor remuneração; sofrendo mais violência; tendo menos acesso à saúde e à proteção social.
A Lei 12990/2012 (Lei de Cotas) contava com menos de dez anos de existência quando se iniciou a pandemia de COVID-19, o que nos leva a crer que boa parte das estudantes do ensino fundamental que desistiram da educação formal à época, sequer foram beneficiárias da política de ação afirmativa que as teria beneficiado na conquista por vagas no ensino superior.
Essa constatação deveria criar na sociedade o desconforto de “condenar” uma parcela específica da população ao insucesso acadêmico e profissional. Estamos em débito com essas meninas.
Mesmo reconhecendo que a evasão impede a aplicação da política de cotas raciais, é fundamental insistir nesse direito que é, acima de tudo, uma reparação histórica e uma medida necessária para corrigir desigualdades profundas e estruturais.
A partir de hoje, quando você se deparar com uma jovem em um posto de trabalho informal e/ou desvalorizado na sociedade, pode ser que esteja diante de uma criança que precisou abandonar a escola para atender às necessidades prementes de sua família. Fato que reproduziu e aprofundou as desigualdades de gênero e raça no Brasil.
[1] https://www.geledes.org.br/a-educacao-de-meninas-negras-em-tempos-de-pandemia-o-aprofundamento-das-desigualdades-o-livro/