‘Cantada de Mulheres’ abre mentes e corações sobre a violência de gênero

Era o início dos anos 1990 e a prefeitura de Santos (SP) organizava a programação do Dia Internacional da Mulher. Naquela época, a senhora Ana Cardoso trabalhava na Coordenadoria da Mulher do município e nas reuniões preparatórias do evento, uma das participantes chegou falando do quanto a incomodava ouvir recorrentemente os assovios e as cantadas machistas pelas ruas da cidade. E foi assim que alguém teve a ideia para o nome do evento.

“Cantada de Mulheres! Pois a cantada da mulher é diferente, é com música, é com coisas bonitas. E assim fizemos a apresentação musical daquele ano”, recordou Ana Cardoso. Em 2009, com o apoio da filha Juliana Cardoso (PT), então vereadora em São Paulo, Ana retomou o projeto da ‘Cantada de Mulheres’, que vem acontecendo anualmente, sempre discutindo com as mulheres algo relativo a seu cotidiano ou à conjuntura do país.

Em 2025, a ‘Cantada de Mulheres’ tem como tema “Resistência: Substantivo Feminino”, abordando a luta contra a violência de gênero. Com o apoio do Governo Federal, por meio do Ministério da Cultura, já houve apresentações em diferentes regiões da cidade de São Paulo, uma delas na festa dos 30 anos da rádio Cantareira FM, realizada em 20 de setembro.

No dia 10 daquele mesmo mês, a ‘Cantada de Mulheres’ foi o tema em destaque no programa ‘Comunidade em Foco’, no qual Juçara Terezinha entrevistou Ana Cardoso e Pri Amorinn, uma das integrantes do grupo.

Pri Amorinn, Juçara Terezinha e Ana Cardoso

CANÇÕES MUITO CONHECIDAS, MAS…

A apresentação da ‘Cantada de Mulheres’ tem cerca de duas horas de duração. “Fizemos um roteiro com músicas já conhecidas, contando a história dos relacionamentos femininos desde o começo até a parte em que a mulher sofre a violência dentro de casa ou é vítima de pessoas conhecidas”, detalhou Pri.

“De uma forma leve, descontraída, com música, falamos da luta da mulher contra a violência doméstica”, completou.

Ana Cardoso explicou sobre o roteiro dos shows: “Nós começamos retomando sobre como teve início a violência contra a mulher. Depois, falamos da questão da violência dentro da música, e isso não é uma crítica a compositores, pois tudo foi feito no contexto de uma época”.

Ela deu como exemplo a canção “Emília”, de autoria de Wilson Batista: ‘Quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar / Que de manhã cedo me acorde na hora de trabalhar / Só existe uma / E sem ela eu não vivo em paz / Emília, Emília, Emília / Não posso mais / Eu quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar…’.

“Ele não queria uma esposa. Ele queria uma empregada doméstica”, sintetizou Ana.

A etapa seguinte do show conta a história de uma mulher que sofre violência doméstica, mas que não percebe isso, “pois o marido, às vezes, é carinhoso, é amoroso”, explicou Ana. “Depois, falamos dos diversos tipos de violência dentro de um casamento, até um dia que a mulher fala ‘basta, está influindo nos meus filhos, tchau, vou embora’. Ela joga a chave debaixo da porta, põe a mala dele no corredor”.

A síntese desta libertação está na música “Vou festejar”, de Beth Carvalho: ‘É o teu castigo/ Brigou comigo sem ter porquê/ Eu vou festejar, vou festejar/ O teu sofrer, o teu penar/ Você pagou com traição/ A quem sempre lhe deu a mão [bis]’.

ARTE E REFLEXÃO

Pri Amorinn destacou que o machismo sempre existiu e se manifestou na música. Além de “Emília”, outras canções conhecidas nesta mesma perspectiva são “Amélia”, “Éguinha Pocotó”, “Você não vale nada”.

“No show, nós explicamos as várias fases de um relacionamento, e exaltamos a mulher, por seu pensamento hoje em dia, de barreiras quebradas diante da violência que a gente sofre”, disse Pri, complementando que muitas vezes as pessoas ouvem e cantam uma música sem prestar atenção na mensagem principal.

“O Cantata de Mulheres chama justamente a essa reflexão: o que você está ouvindo? O que esta música quer dizer? Não é raro que se cante sem saber o que se está cantando. A música tem de fazer você pensar. O que está se apresentando pra essa juventude hoje, infelizmente, é uma matéria pobre. E não podemos deixar que se desmonte a cultura. Temos de continuar resistindo”, ressaltou Pri Amorinn.

Juçara observou que a mulher podendo cantar vai se empoderando e se libertando dos preconceitos que hoje vive na sociedade.

“O Cantada também é uma forma de conscientizar as mulheres e quem está por perto para que tome cuidados, pois o número de casos é enorme: 37% das mulheres sofreram algum tipo de agressão de pessoas que estão perto delas; apenas em São Paulo foram 4 mil estupros”, lembrou Pri, comentando ser muito interessante o fato de que nos shows tem havido a participação de muitos homens.

“Isso ajuda a conscientizá-los sobre o machismo que está encrustado na vida deles. Nós conscientizamos nossos filhos e nossos parceiros que o feminismo não é odiar os homens, mas ajudá-los a nos respeitar e a entender que podemos fazer igual sem usar a mesma força física”, comentou a artista.

Integrantes do Cantada de Mulheres

PERIFA FAZ

Este ano, o Cantata de Mulheres está incluindo nas ações do Perifa Faz, que garante suporte financeiro a diferentes ações como shows e oficinas culturais, promovidos por artistas da periferia.

Pri Amorinn destacou que ainda hoje tem sido difícil nas periferias encontrar suporte para a realização de atividades culturais, seja pela dificuldade para entender todos os trâmites das leis de fomento, seja pelo fato de organizações intermediárias controlarem os caminhos para o acesso aos projetos, fazendo com que os artistas recebam menos recursos diretos.

“O que existe de artista bom na periferia, é incrível, mas, muitas vezes, se perde um grande talento por ele não ter tido condições de formar seu material”, lamentou Pri.

Juçara complementou dizendo sobre os muitos relatos de artistas que vão à rádio e reclamam justamente de dificuldades financeiras para manter seus projetos. A apresentadora, bem como Pri e Ana Cardoso ressaltaram que comunicação, cultura e educação são um tripé capaz de melhor conscientizar a população periférica e dar mais dignidade de vida às pessoas.

CLIQUE E SAIBA MAIS SOBRE O CANTADA DE MULHERES

Abaixo, assista a íntegra da live de 10 de setembro do ‘Comunidade em Foco’