O diário de Janusz Korczak

por Simone Preciozo
Recentemente, vi uma notícia compartilhada em uma rede social. Passei rápido por ela. Procurei depois em todos os perfis possíveis e não encontrei. Eram imagens de um grupo de crianças felizes brincando ao redor de um jovem extremamente atencioso. Todos eles marcados pela fome e situação de extrema vulnerabilidade. De onde vinham as imagens? Gaza, a nova Treblinka.
Chamava a atenção a alegria transgressora daquelas crianças, que muito provavelmente eram algumas daquelas que vemos em postagens e notícias segurando panelinhas em busca de alimento. Entretanto, naqueles momentos, permitiam-se brincar. E tinham um amigo, cuidador atento que se ocupava daquela felicidade. Esse rapaz apareceu em imagens seguintes, já sem vida, rodeado por parentes inconformados.
Uma volta ao passado
A postagem triste lembrou a história de Janusz Korczak, educador e médico judeu que, durante a segunda guerra mundial, foi confinado no gueto de Varsóvia até ser finalmente levado para o campo de extermínio de Treblinka com duzentas crianças.
Janusz, antes do confinamento, era diretor de um orfanato em Varsóvia, Polônia e atendia a crianças polonesas. Dentre elas, judias.
Com o crescimento do anti-semitismo, os nazistas na Polônia ocupada, passaram a identificar os judeus com uma estrela de Davi estampada na roupa e os confinaram (chegaram a 400.000) em uma área de 3,4 km². Eram 30% da população de Varsóvia ocupando 2,4% de área, em circunstâncias sanitárias precárias e com a oferta de 180 calorias por dia.
Mudança forçada

Janusz e seu orfanato foram transferidos para dentro do gueto e passaram a atender somente crianças judias.
Em 1942, dois meses antes de serem todos do orfanato enviados para o campo de Treblinka, Janusz soube pelo soldado alemão que vigiava sua casa que todos seriam exterminados. Sabendo que não haveria como fugir a esse final determinado, deu um jeito de fazer com que suas crianças continuassem felizes, tomando decisões conjuntamente em assembleias como sempre fizeram e coroou a passagem das mesmas pela vida com a encenação de uma última peça de teatro, intitulada “O Correio”, do indiano Rabindranath Tagore, na qual o autor ensina as crianças a não temerem a morte. O tema versa sobre um menino doente que é proibido de deixar seu quarto, e a quem a morte liberta da doença e da agonia. Desta forma, um dia, quando chegasse a hora, poderia acordar para um mundo melhor.
O correio: a despedida das crianças e de Janusz
Com a viagem ao campo de extermínio anunciada, o diretor tratou de acelerar e cuidar para que a apresentação daquelas crianças fosse primorosa. Escolheu viver até o fim daquela maneira, rodeado de crianças que ele fazia feliz até o último momento.
Em seu diário teria sido encontrado a seguinte afirmação: “Se é necessário morrer sem ter armas para se defender, então o único outro jeito de enfrentar esse destino é morrer cantando. Se a vítima canta, face a face com o assassino, mostra com isso acreditar que seu algoz será destruído para sempre. Teremos de marchar até a Umschlagplatz. Nós, do Orfanato Dom Sierot, marcharemos em fila, cantando e empunhando nossa bandeira, com a mesma dignidade de quando, no passado, saíamos para nossas excursões. Todos nós marcharemos cantando”.[1] E assim fizeram. Vestidos com suas melhores roupas (tanto quanto lhes era possível) andaram em fila e de mãos dadas até a estação de trem que os levaria ao destino final. Eram cem crianças em cada vagão. E assim termina sua história. Ou começa, porque a mesma foi contada mediante os registros de seu diário, que produziu em um período antes do mais crítico vivido no gueto e que ele voltou a escrever no campo de concentração, enquanto aguardava o extermínio.
A primeira publicação deu-se em 1958, graças aos escritos encontrados nos escombros do campo onde esteve.
Gaza, a nova Treblinka

Oitenta anos após o final da segunda guerra mundial, estamos à volta com atrocidades feitas a crianças e mulheres, dentre alvos civis da Faixa de Gaza.
Nossa tristeza coletiva e sensação de impotência vão nos acompanhar por todos os dias que nos restarem. Não será permitido à nossa geração esquecer o que vemos diariamente na internet. Inclusive histórias tão singelas que nos passam no feed sem conseguirmos voltar a ela e identificar personagens e fatos.
A minha esperança é a de que os heróis anônimos desses dias tão sangrentos, que se ocupam de manter as crianças felizes como crianças, tenham registrada a sua passagem incomum pelo planeta.
[1] Revista Morashá. https://www.morasha.com.br/holocausto/janusz-korczak-e-seu-diario-do-gueto.html