Direito à indignação

Simone Preciozo

 
INTERTEXTO

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

Bertold Brecht

Tenho pensado quase diariamente nesse poema escrito por um homem que viveu os horrores das duas grandes guerras mundiais. Uma realidade que minha geração não conheceu de perto. Somente as consequências. Talvez por isso, mesmo vivendo o final da ditadura que começou em mil novecentos e sessenta e quatro, acreditei que a violação desmedida dos direitos humanos fizesse parte do passado. Uma vez superada, a impressão que eu tinha é que deveríamos lutar por questões mais refinadas, que se impunham na pós-modernidade, tempo de avançar na direção das identidades.

FERNANDO HOLIDAY, O CAÇADOR DE PROFESSORES

Confesso que naquele dia em que vi na internet a notícia de que um vereador, Fernando Holiday, do recém-criado MBL, havia “visitado” escolas da prefeitura de São Paulo com o objetivo de “fazer blitz nas escolas e caçar professores de esquerda” me preocupou.

Tínhamos passado pelo golpe que destituiu uma presidenta (ou presidente) da república eleita pelo povo no ano anterior, obedecendo a um “script” que veio de fora. Achei que por ora nada mais teria o poder de me assustar. Aquela manhã de dois mil e dezessete veio contradizer o que eu acreditava. Sim, havia mais para me surpreender. Foi um deputado estadual, Carlos Gianazzi, ligado à categoria dos professores, que conseguiu acionar o Ministério Público e fazer sua queixa ecoar no próprio governo municipal. A opinião pública, em geral, não apoiou a patrulha. Na internet, por aqueles dias, era comum a bandeira da “escola sem partido” movida por aquele vereador e por vários políticos ligados na época ao posicionamento que levou o país ao bolsonarismo.

Manifestação dos profissionais da Educação de São Paulo (foto: Simpeem)

O DESACATO DE ZOE MARTINEZ

Aquele evento, ocorrido há oito anos, parece haver provocado uma maior indignação do que o que ocorreu na última semana na Câmara dos Vereadores de São Paulo. A vereadora Zoe Martinez, do PL, chamou os professores municipais de “vagabundos” por diversas vezes, só retirando o que disse depois de se certificar de que tinha ido parar no TikTok. E porque alguém deve ter soprado no seu ouvido ou mandado no seu whatsapp que poderia configurar quebra de decoro e a tal vereadora ser alvo de processo.

Os professores municipais estão em greve, arriscando seus empregos públicos, conquistados por meio de concursos de aprovação difícil. Arriscando porque em governos que flertam com o que há de pior na sociedade, o direito à greve nunca é reconhecido. Ainda mais em tempos mundialmente sombrios.

A pauta da greve dos profissionais de educação de São Paulo inclui reajuste de salários praticamente congelados há dez anos, para que os profissionais possam honrar dignamente seus compromissos financeiros básicos, tais como boletos, alimentação etc. e uma reivindicação fundamental: manter a lotação dos diretores de escola e não privatizar a gestão.

É uma briga solitária pela preservação da educação pública como direito. Isso é muito grande. Eu me pergunto se a população tem a dimensão do que está em jogo. Então fica mais difícil suportar as manifestações escatológicas e ofensivas de uma representante eleita pelo povo, na casa do povo, durante uma votação acelerada de um reajuste pífio.

Acredito que a senhora citada não reconheça o trabalho dos educadores da rede pública, mas o que preocupa é estar tão à vontade para xingar de “vagabundos” toda uma categoria de trabalhadores que têm um papel fundamental na sociedade. Bertold Brecht, ao escrever o poema citado no início deste artigo, acertou na análise. A história tem mostrado. E neste momento de indignação, eu pergunto a você, leitor, quem serão os próximos? Se os professores hoje são alvo de tamanho ódio, simbolicamente isso tem um significado. Parece que começou lá em dois mil e dezessete, lembra? Quais serão os próximos atos desta história distópica?

APAGÃO DE PROFESSORES

O instituto SEMESP, recentemente, divulgou um estudo estatístico em que aponta que o país sofrerá um “apagão” de professores. A procura pela carreira tem diminuído ano a ano. Nesse estudo, a previsão para o apagão é dois mil e quarenta. Talvez nem chegue até lá. O tema foi pauta do podcast “O Assunto” recentemente.

Para os parlamentares que se ocupam de “caçar” professores de esquerda, eu gostaria de dizer que, sendo mulher, mãe e progressista, quando um dos meus filhos se deparava com um professor que deixava clara sua ideologia de direita e não raramente buscava doutrinar os alunos para acreditarem no que dizia, o seu discurso não tinha aderência com os meus. Sabe por que, senhor/a parlamentar? Porque a educação política deles acontecia em casa e, mais extensivamente, na comunidade. Acredito que uma maior ou menor consciência de classe e do papel que se ocupa no mundo é “professora” neste caso.