Um Angélico que se fez dons para o próximo

por Daniel Gomes
De diferentes partes de São Paulo e de outras cidades, centenas de pessoas passaram pelas ruas estreitas e os morros que as conduziam à Igreja Nossa Senhora Aparecida, na Vila Zatt, na zona Noroeste de São Paulo.
A expansiva Praça Vinte e Cinco de Novembro, onde se localiza o templo, e suas ruas laterais estavam cheias de carros na tarde da quarta-feira, 16 de abril. Dentro da igreja, a multidão se despedia de um homem que muito caminhou por estas e muitas ruas estreitas e morros da Região Brasilândia: Dom Angélico Sândalo Bernardino, que falecera no dia anterior, aos 92 anos de idade, na casa paroquial, sob os cuidados de dois amigos padres: Antônio Leite Barbosa Júnior (Toninho) e Armênio Nogueira.
Dom Angélico, nascido em Saltinho (SP) em 19 de janeiro de 1933, era conhecido como o “Dom dos Pobres”, seja na Região Brasilândia, onde foi Vigário Episcopal entre 1989 e 2000, seja nas regiões Leste 1 (atual Região Belém) – a primeira que atuou como Bispo Auxiliar de São Paulo, após ser ordenado em 1975 – e Leste 2 (atual Diocese de São Miguel Paulista), entre 1976 e 1989.
Em seus 92 anos de vida, irradiou seu lema episcopal “Deus é amor”, seja nas ações eclesiais, seja nas mobilizações nas quais se engajou, como na luta contra a ditadura militar, a defesa da redemocratização do País e o combate permanente às desigualdades sociais.
“Queremos colaborar para que haja sociedade justa e fraterna. A desigualdade social é escandalosa. Perversa é a concentração de renda nas mãos de poucos”, enfatizou ao tomar posse como primeiro Bispo de Diocese de Blumenau (SC), em 24 de junho de 2000, dia de São João Batista.
“Se esta postura na defesa e promoção dos direitos da pessoa humana, de maneira especial dos pobres, dos que sofrem, custar à Igreja em Blumenau incompreensões, estaremos lembrados que outra não foi a sorte de João Batista e agradecemos ao Pai, humildes e reverentes, a bem-aventurança da perseguição”, disse Dom Angélico naquela ocasião, um discurso que remete aos muitos que proferiu como Bispo Referencial da Pastoral Operária em São Paulo.
Dom Angélico deixou a Diocese de Blumenau em fevereiro de 2009, após ter a renúncia por motivo de idade (já havia completado 75 anos) aceita pelo Papa Bento XVI. Decidiu, então, retornar a São Paulo, onde manteve-se ativo, celebrando em comunidades e tomando parte nas lutas populares, como nas mobilizações contra a instalação de mais um lixão no bairro de Perus.
COM O CORAÇÃO DO POVO

Cônego José Renato Ferreira, do clero da Arquidiocese de São Paulo, está na Brasilândia desde o início dessa região episcopal, que foi desmembrada da Região Lapa: “Foi um momento de reconstrução muito intenso e Dom Angélico foi, de fato, como o seu nome diz, o anjo que nós precisávamos para nos articular, para nos organizar”.
“Ele sempre motivava esse modelo de uma ‘igreja rueira’, que hoje o Papa Francisco chama de igreja em saída, de uma igreja da misericórdia. Pelos morros da Brasilândia, o seu testemunho maior como pessoa, como profeta, como pastor, como bispo, é de fato o testemunho de misericórdia. Tudo o que Dom Angélico fez a todas as pessoas, de todos os níveis, de todas as ideologias políticas, foi por causa da misericórdia, desde carregar alça de caixão quando não havia número de pessoas suficiente para isso, até se envolver em favor da dignidade das pessoas em situação de vulnerabilidade. Ele não era um homem que falava e não fazia”, prosseguiu o Sacerdote.
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A capacidade de Dom Angélico em dialogar pela busca de soluções diante dos mais variados problemas também foi destacada como um de seus legados por Dom Carlos Silva, OFMCap., Bispo Auxiliar de São Paulo e atual Vigário Episcopal para a Região Brasilândia.
“Só existe diálogo se existe proximidade. Dom Angélico era um homem da proximidade e por isso conseguia dialogar com o diferente, trazendo a proposta de seu lema ‘Deus é amor’, sabendo que o amor circula com seu espírito e que mesmo nas diferenças se pode construir a unidade, e Dom Angélico nos ensinou este caminho”.
E foi essa proximidade que a fotógrafa Taíse Cortês sentiu quando recebeu a bênção de Dom Angélico pela primeira vez.
“Eu participava de um retiro paroquial e ele celebraria a missa de encerramento. Ao chegar, cumprimentava cada uma das pessoas presentes. Eu estava grávida e quando me viu, cumprimentou-me, colocou as mãos sobre minha barriga, fez breve silêncio e falou: ‘Um dia, você diga ao seu filho que um velho bispo rezou por ele’. Ontem, oito anos depois, contei novamente ao meu filho sobre essa história. Emocionado, meu filho disse: ‘Agora é a minha vez de rezar por ele’.
‘MUITO OBRIGADO, DOM ANGÉLICO’

A missa de corpo presente de Dom Angélico foi presidida pelo Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo, tendo a Paróquia Nossa Senhora Aparecida repleta de pessoas com os quais Dom Angélico conviveu e dialogou, desde os mais simples até os com cargos públicos.
Dom Odilo ressaltou o testemunho da fé cristã que Dom Angélico difundiu ao longo da vida e seu especial amor e atenção aos mais pobres. Após os ritos da exéquias, Dom Carlos Silva puxou o coro do “Muito obrigado, Dom Angélico”, após o qual se seguiram minutos de efusivas palmas.
Na tarde da quinta-feira, 17 de abril, o corpo de Dom Angélico foi sepultado na Catedral de Blumenau (SC).