Medo de Elevador

Simone Preciozo

Quando criança, desenvolvi um medo a partir da história triste que minha mãe contava: a de um professor que teria caído no poço do elevador. Sempre fui orientada a olhar bem se os elevadores estavam no andar antes de entrar. Eles não eram comuns para mim. Acredito que encontrava em um ou outro edifício público ou ainda no apartamento mais rico e moderno de algum parente.

Eu cresci acreditando naquela fatalidade. Não sei ao certo quando esse medo foi desconstruído. Acho que na razão inversa ao conhecimento da biografia daquele professor, que me encantou desde que era aluna do Magistério. Na educação, é comum aprender sobre o Movimento da Escola Nova. Sim, complexo, liberal, laico, pensado por uma elite de educadores, dentre ele,  Anísio Teixeira.

Escola Parque Carneiro Ribeiro (foto: Fundaj.gov.br)

O século XX era o tempo dos efeitos dos Estados-Nações no Brasil, como em outros países. Nacionalismo e desenvolvimentismo levaram grandes nomes da burguesia intelectual a voltarem os olhos para a desigualdade da sociedade brasileira. Em São Paulo, por exemplo, Mario de Andrade, com o cargo de Diretor-fundador do Departamento de Cultura, fundou os parques infantis. Em Salvador, Anísio Teixeira, anos mais tarde, foi um gestor de políticas educacionais em diversos níveis, sempre em defesa da escola pública, que ele definia como “máquina de democracia”.

A mentalidade desenvolvimentista e nacionalista, herança da Revolução Industrial, acompanhou o Brasil, digamos, até o golpe que nos levou aos anos sangrentos da ditadura empresarial-militar. Com esta, morreu um jeito de fazer política pública. O desejo compartilhado por muitos nomes de ver o cidadão brasileiro em melhores condições de vida, saúde e educação. Eu e você não chegamos a acreditar que os intelectuais da época gostariam de ver os filhos da classe trabalhadora sentados nos bancos das universidades lado a lado com os seus filhos. Mas não há como negar que pensaram no povo. De alguma maneira. De um jeito que os governantes à época não pensavam. Com esse espírito, Anísio criou a Escola Parque Carneiro Ribeiro. Um projeto auspicioso que se pretendia piloto. Ficou assim até hoje. Apenas uma unidade completa e outras que fazem parte do mesmo complexo. Por ocasião de sua inauguração, Teixeira teria dito: “Não existe educação barata, como não existe guerra barata.” Por sua defesa da escola pública, laica e universal para os brasileiros, foi considerado comunista tanto no governo de Getúlio Vargas, que o perseguiu, quanto no governo dos militares, que cassaram seus direitos políticos assim que assumiram o poder, no dia 31 de março de 1964.

Daquilo que sobrou ao velho educador que colecionava glórias pretéritas, sabemos que Anísio Teixeira era ainda convidado a proferir palestras na Fundação Getúlio Vargas e concorria a uma vaga na Academia Brasileira de Letras em 11 de março de 1971. Saindo do prédio da fundação, teria se dirigido ao edifício Duque de Caxias, em Botafogo, para pedir apoio ao velho amigo Aurélio Buarque de Holanda (autor dos dicionários). O encontro não aconteceu. Três dias depois, em circunstâncias no mínimo questionáveis em relação à causa mortis, Anísio foi encontrado no poço do elevador.

A Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília (CATMV/UnB) que foi criada em agosto de 2012 por meio da Resolução da Reitoria nº 85/2012, dentre outras mortes suspeitas, passou a investigar também a de Anísio Teixeira, reforçando o que tantos brasileiros desconfiaram: pode não ter sido acidente.

Foto: Fundação Anísio Texeira/Arquivo

Com a redemocratização do país, a partir de 1984, muitas vezes em que pesquisei Anísio Teixeira por meio de material audiovisual, eu me deparei com um ou outro familiar, ou ainda amigo do educador, deixando reticente a sua morte. Desde então, superei o medo de cair no buraco do elevador.  Passei a ter cada dia mais medo das ditaduras. Na verdade, parafraseando o grande senador Ulisses Guimarães, desenvolvi “ódio e nojo”.

Importante ressaltar que se Anísio Teixeira vivesse hoje, veria, dentre outras aberrações, que a educação no Brasil está cada vez menos pública, mais barata e se transformando em mercadoria.